domingo, 5 de janeiro de 2014


      A SOLIDÃO DA CIDADE INDIFERENTE

Às vezes chovia, as telhas velhas dos telhados molhados escorregadias...
Caminhava por isso agachado e devagar, acendia o maçarico, acocorava-me e então soldava e moldava o zinco.
As mãos enegrecidas, golpeadas, inchadas e vermelhas do frio e da chapa, a boca encieirada...
E suava, arquejava enrolado, inventando um rio adormecido, sulcando o mar das casas com as lágrimas do estanho derretido no lume do maçarico.
E, olhava, lá do alto olhava o ondear de gente nas ruas que como pequenos barcos naufragados pareciam ir à deriva.
Que rios de aflições eu pressentia naquele vaivém anónimo!
Dores.
Apelos.
Silêncios estrangulados por mudos pedidos de socorro que se soltavam e ganhavam rosto.
A cidade.
A solidão da cidade indiferente.


                 ***

em cima do telhado    ou com o mundo às costas
lavras as pedras
no duro roer
das tuas horas

e com os olhos dizes adeus
está tanto frio
tens os dedos golpeados do zinco
nos teus dedos por dentro dos teus dedos
o sangue quer sair para fora

e os teus olhos olhando as pessoas
que passam em baixo
são duas luas a soluçar
no céu cinzento


    ***

onde está a laranja azul da tua
intimidade
as telhas do telhado
e ao longe    tão ao longe
os olhos de quem passa sem rumo
no mar das ruas

e tu acenas no teu silencio
dessa tua distancia    estás lá tão alto
a ferida dos teus lábios
é uma flor encarnada

uma flor encarnada
o sol dos lábios

no silêncio do mundo


       ***

o peso do tempo      do tempo da chuva do vento
nas tuas mãos    nos teus dedos
fechados
no mistério das coisas
esse dançar
no prumo das casas
pentear
o escuro
à noite

quando os rios morrem
e sonham olhos


           ***

a vastidão dos rostos      o mundo na vastidão
dos rostos
e riem
os rostos
sulcados por uma água
de mágoa
o veludo das horas
acerado
o peso das horas
no corpo dobrado

e riem
na boca
um grito voltado para dentro


    ***

se entendesse
se olhasse os rostos e entendesse
os rostos      os abismos sem fundo
com silêncios e ecos
sulcados por riscos
as redes onde um pássaro se debate
e cada vez mais no fundo
um grito
uma rosa
no fumo
das esquinas

se entendesse

e navegassem
os dedos
a cicatriz dum sorriso


      ***

e os rios
seguem os seus cursos
quem ouve esse mar interior
quem decifra essas palavras
rostos
que se apagam
e são aves
sem voar

quem olha
o fogo ferido

(do livro Homem da Fábrica)

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