A SOLIDÃO DA CIDADE INDIFERENTE
Às vezes chovia, as telhas velhas dos telhados molhados escorregadias...
Caminhava por isso agachado e devagar, acendia o maçarico, acocorava-me e então soldava e moldava o zinco.
As mãos enegrecidas, golpeadas, inchadas e vermelhas do frio e da chapa, a boca encieirada...
E suava, arquejava enrolado, inventando um rio adormecido, sulcando o mar das casas com as lágrimas do estanho derretido no lume do maçarico.
E, olhava, lá do alto olhava o ondear de gente nas ruas que como pequenos barcos naufragados pareciam ir à deriva.
Que rios de aflições eu pressentia naquele vaivém anónimo!
Dores.
Apelos.
Silêncios estrangulados por mudos pedidos de socorro que se soltavam e ganhavam rosto.
A cidade.
A solidão da cidade indiferente.
***
em cima do telhado ou com o mundo às costas
lavras as pedras
no duro roer
das tuas horas
e com os olhos dizes adeus
está tanto frio
tens os dedos golpeados do zinco
nos teus dedos por dentro dos teus dedos
o sangue quer sair para fora
e os teus olhos olhando as pessoas
que passam em baixo
são duas luas a soluçar
no céu cinzento
***
onde está a laranja azul da tua
intimidade
as telhas do telhado
e ao longe tão ao longe
os olhos de quem passa sem rumo
no mar das ruas
e tu acenas no teu silencio
dessa tua distancia estás lá tão alto
a ferida dos teus lábios
é uma flor encarnada
uma flor encarnada
o sol dos lábios
no silêncio do mundo
***
o peso do tempo do tempo da chuva do vento
nas tuas mãos nos teus dedos
fechados
no mistério das coisas
esse dançar
no prumo das casas
pentear
o escuro
à noite
quando os rios morrem
e sonham olhos
***
a vastidão dos rostos o mundo na vastidão
dos rostos
e riem
os rostos
sulcados por uma água
de mágoa
o veludo das horas
acerado
o peso das horas
no corpo dobrado
e riem
na boca
um grito voltado para dentro
***
se entendesse
se olhasse os rostos e entendesse
os rostos os abismos sem fundo
com silêncios e ecos
sulcados por riscos
as redes onde um pássaro se debate
e cada vez mais no fundo
um grito
uma rosa
no fumo
das esquinas
se entendesse
e navegassem
os dedos
a cicatriz dum sorriso
***
e os rios
seguem os seus cursos
quem ouve esse mar interior
quem decifra essas palavras
rostos
que se apagam
e são aves
sem voar
quem olha
o fogo ferido
(do livro Homem da Fábrica)
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