terça-feira, 21 de janeiro de 2014

 
          ELEITOS DO POVO    -   E OPRIMEM, MATAM
 
 
Sobrevivemos   e   é esta a maldição   -    vivemos um tempo de horror e desumanização.
Fascismo sem rosto servido por marionetas com sorriso de plástico que escorrem sangue dos dentes. E apregoam a caridade, a caridade dos ricos - a humilhação dos pobres.
E cercam-nos, cercam-nos com a sua crueldade enquanto na vanidade e mentira consumam os seus crimes.
Escroques, crápulas ao serviço do dinheiro sem rosto, dizem que são ministros, dizem que são eleitos, representantes do povo - e oprimem, matam, lentamente matam à fome, na solidão e doença matam.
Com o desemprego matam, com a indigência matam.
Dizem que são ministros, eleitos, mas são assassinos.


            ERA MEU AMIGO

mas é uma vergonha está bêbado e já não liga a nada
outro dia até foi apanhado a roubar

tudo histórias tristes    dizem    por isso a mulher já lhe pôs os cornos

era delegado sindical e depois da última greve foi despedido
os tribunais
estava à espera
há um ano há dois há três há muitos
a casa hipotecada
e todos os dias discussões com a família

no banco
os presados funcionários afirmaram    ameaçou-nos

o juiz olhou longamente o seu rosto devastado de bêbado
e depois de um pesado silêncio
com voz pausada disse -- um ano de prisão


          EMIGRANTES

a ela levaram-na para uma casa de putas
a ele ameaçaram-no que se não estivesse calado e quieto
o denunciariam

não percebem a língua
do país onde estão
vivem longe um do outro

ele debaixo da ponte onde dorme e vê
as águas do rio correr
debruça-se e já não reconhece o seu próprio rosto
ela amordaçado o coração mudado o nome
deixa que a memória se apague

o paraíso que sonharam
é agora o inferno das suas vidas

emigrados na selva da grande cidade
não existem


         OS SENHORES DA GUERRA

um cartaz colado na parede por um homem inconformado
tu   lês    desde há cinco anos centenas de milhares
de mortos na guerra do Iraque

crianças
o seu rosto de espanto para sempre fechado
acusando o mundo
mulheres a face aberta num grito

farrapos já sem vida

as casas em ruinas
só paredes esburacadas

e por entre os destroços os cães farejam
e nas esquinas as espingardas dos soldados apontadas

ruinas    ruinas   mortes

e no jornal sorrindo o primeiro ministro português Durão Barroso
ao lado do Bush americano
o Blair inglês
e o espanhol Aznar
e tu olhas e a fotografia cresce cresce
e crescem aqueles rostos sorrindo

são um grande balão    um monstruoso balão
cheio de sangue sobre o mundo

ameaça-nos

(do livro Corpo de Compromisso)

domingo, 19 de janeiro de 2014


SOMOS OS CONDENADOS POR ESTE TEMPO NEOLIBERAL FASCISTA

 
Penumbra, vivemos num país de penumbra, vivemos num país de anoitecer, de sombras, gente escondida pela vergonha e pelo desanimo.
Todas as pessoas estão sós: estão sós porque estão desempregadas, estão sós porque estão com fome, estão sós porque são ninguém.
Penumbra, este país é um poço de desolação, e, nós, os que vivemos na sombra de nós mesmos, olhamos ao redor, olhamos no silêncio o mar de vazio à nossa volta.
Somos os condenados por este tempo do chamado neoliberalismo: capital sem rosto, fascismo disfarçado, desumanidade...
Arrastamo-nos junto às paredes de ruelas estreitas e desabitadas.
Somos os escorraçados da terra!

OS QUE SÃO NINGUÉM

e será que nós
os que são ninguém     porque ninguém nos procura
temos um rosto

porque não sorrimos
porque não olhamos
as ruas são tão compridas
tão longos   e    longos os dias
tão iguais

cercados
pela solidão do mundo
tudo passa longe

o afeto
é um sonho
a dignidade uma luta

e somos vencidos

vencidos

um dia à beira dos passeios
caídos

o desemprego    a solidão
e passa gente e diz - estas coisas aqui devia de ser
proibido


LABAREDAS NAS ESQUINAS

olha      os montes de miséria escondida
pelo silencio

estão encarcerados num mar de vergonha
são desempregados
velhos    falidos
cegos olham
o deserto em que se transformou o mundo
à sua volta
e depois
na desolação desaparecem

por isso
o governo os ministros dizem que não existem
e eles assim são ninguém

e passam na noite labaredas nas esquinas
a incendiarem o tempo cinzento que vivemos

como se morrêssemos


  DESEMPREGADO

e chega a manhã
e vais ao frigorifico
«que vou fazer para o almoço
ainda tenho arroz»

e pensas - um pouco de arroz
hoje
amanhã massa
e contas o dinheiro
talvez ainda chegue até ao fim do mês

o correio bate-te à porta
entrega-te a carta com a conta da luz
tu olhas
amargurado
a tua mulher chega e pergunta-te o que tens

não dizes nada
a linha do comboio é uma tentação

mas continuas à procura de emprego


UM SOPRO DE ALENTO

mas até os sonhos nos roubaram

olhamos à volta   miséria    miséria
ao lado da ostentação indiferente
e temos a tentação de baixar os braços
de nos deixarmos ir na corrente

os pobres    os despedidos    sombras    sombras
junto às paredes

e depois os ricos    um pacote de leite
para os excluídos    e sorrindo estendem as mãos
limpas e cuidadas

e dormes    e dormes

mas na manifestação consegues um sopro de alento

tantos e tantos milhares
caminhando unidos    um mar humano

e então voltas à casa solitária bebendo a esperança

(do livro Corpo de Compromisso)

domingo, 5 de janeiro de 2014


      A SOLIDÃO DA CIDADE INDIFERENTE

Às vezes chovia, as telhas velhas dos telhados molhados escorregadias...
Caminhava por isso agachado e devagar, acendia o maçarico, acocorava-me e então soldava e moldava o zinco.
As mãos enegrecidas, golpeadas, inchadas e vermelhas do frio e da chapa, a boca encieirada...
E suava, arquejava enrolado, inventando um rio adormecido, sulcando o mar das casas com as lágrimas do estanho derretido no lume do maçarico.
E, olhava, lá do alto olhava o ondear de gente nas ruas que como pequenos barcos naufragados pareciam ir à deriva.
Que rios de aflições eu pressentia naquele vaivém anónimo!
Dores.
Apelos.
Silêncios estrangulados por mudos pedidos de socorro que se soltavam e ganhavam rosto.
A cidade.
A solidão da cidade indiferente.


                 ***

em cima do telhado    ou com o mundo às costas
lavras as pedras
no duro roer
das tuas horas

e com os olhos dizes adeus
está tanto frio
tens os dedos golpeados do zinco
nos teus dedos por dentro dos teus dedos
o sangue quer sair para fora

e os teus olhos olhando as pessoas
que passam em baixo
são duas luas a soluçar
no céu cinzento


    ***

onde está a laranja azul da tua
intimidade
as telhas do telhado
e ao longe    tão ao longe
os olhos de quem passa sem rumo
no mar das ruas

e tu acenas no teu silencio
dessa tua distancia    estás lá tão alto
a ferida dos teus lábios
é uma flor encarnada

uma flor encarnada
o sol dos lábios

no silêncio do mundo


       ***

o peso do tempo      do tempo da chuva do vento
nas tuas mãos    nos teus dedos
fechados
no mistério das coisas
esse dançar
no prumo das casas
pentear
o escuro
à noite

quando os rios morrem
e sonham olhos


           ***

a vastidão dos rostos      o mundo na vastidão
dos rostos
e riem
os rostos
sulcados por uma água
de mágoa
o veludo das horas
acerado
o peso das horas
no corpo dobrado

e riem
na boca
um grito voltado para dentro


    ***

se entendesse
se olhasse os rostos e entendesse
os rostos      os abismos sem fundo
com silêncios e ecos
sulcados por riscos
as redes onde um pássaro se debate
e cada vez mais no fundo
um grito
uma rosa
no fumo
das esquinas

se entendesse

e navegassem
os dedos
a cicatriz dum sorriso


      ***

e os rios
seguem os seus cursos
quem ouve esse mar interior
quem decifra essas palavras
rostos
que se apagam
e são aves
sem voar

quem olha
o fogo ferido

(do livro Homem da Fábrica)

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

 
      A DÁDIVA
 
Quase trinta anos depois: e os pássaros habitam o coração...
Que o suor, o suor doce continua a escorrer nas faces enegrecidas do pó, da ferrugem, do óleo.
Que este poder desumano que agora desgoverna a nossa vida, apesar de tudo, ainda não conseguiu alienar completamente o - Orgulho Operário - o prazer de com o suor do rosto o homem lavrar o seu próprio pão, o orgulho de com o seu suor, o suor do seu corpo semear o corpo coletivo, ser parte da dinâmica criativa e afetiva do mundo, da comunidade.
De a poesia, com a sua humildade, a sua verdade humana, no mais recôndito, na solidão e silencio, enquanto bate o coração do mundo, habitar no coração proletário, procurar as palavras do seu sangue, e, oferecê-las.
Ser com elas.
Esta a dádiva.


     ***

o mundo é tão grande     e ali
todos os dias    era uma ressurreição     uma aleluia
o ar era habitado
a água     o riso da frescura

lá fora as árvores acenavam
e os rostos passavam como se voassem


        ***

entre os relâmpagos do maçarico acetilene
o ferro fendia

e soprávamos      e o fumo fugia
e depois como se fosse à noite
como se a janela do quarto estivesse fechada
e de manhã fosse aberta
o sol dentro da oficina
o sol a entrar
e o ferro a luzir

o mundo a sorrir


     ***

na tarde no brilho do dia alto
olhavas os horizontes

um ramo de árvore acenava
e a frescura do verde entrava e abraçava os corpos
suados
as ferramentas falavam    suspiravam   tinham coração

ali era uma horta e uma casa com a mesa posta


                  ***

a lágrima

o ferro      as mãos     os pássaros ocultos no coração

(inéditos)