terça-feira, 31 de dezembro de 2013


            A REVELAÇÃO DA BELEZA


O amor é - A Revelação da Beleza.
Deslumbramento.
Quem não amou nunca verdadeiramente olhou e descobriu o mundo e a sua formusura.
Porque o amor ilumina, o amor descobre.
Olhamos, olhamos e de repente, é a doçura, uma doçura que nasce no mais fundo, no mais íntimo do ser e se revela aos nossos olhos.
E nós, é tanta a felicidade que pedimos para morrer: morrer assim na plenitude dessa revelação, morrer assim no júbilo dessa descoberta, morrer nessa total comunhão.
E porque é que tudo depois se apaga?
Porque é que o mundo se torna cinzento, vazio?
E a nossa vida um arrastar de asas feridas?
Porquê, porquê?
E é a solidão, e é a reminiscência, o consolo no nosso íntimo, na nossa intimidade solitária, desses olhos, dessa luz que um dia nos fora revelada, que um dia nos fora dada.
E sorrimos.
E recordamos.


     ***

e por cima a refulgência
da vastidão

enquanto uma flor desponta

e um verso nasce
dos lábios da água


          ***

pedra a pedra    arfando

revela

as preciosidades    água limpidíssima
renda fina    oiro
olhos da cor do mar e do luar
olhos semeados de estrelas
ó inefáveis momentos
em que as entranhas embriagadas
ardiam
cantavam

no silencio cantavam
e agradeciam


       ***

barca    barca     sem ilha
a que aportar

barca sem mar

e crescem as sombras     a largura do mundo

o que o povoa
que és tu assim só e à procura
tu barca
com palavras que ferem     com palavras
que querem ser    um rosto
um coração
um pão para alimento
da alegria

barca

arca sem fundo

de feridas preciosidades


       ***

sombras    sombras    jovem corsa
um rosto sem idade
do escuro olha

e esse rosto é uma ferida como um diamante
tem luz
é uma ferida como uma flor
no silêncio música      música
no silêncio com que olha

e diz adeus
e ama     o amanhecer do mundo


         ***

o silêncio    as lâminas do ar

quem passa neste branco    quem habita
esta aspereza
é de noite    é sempre de noite
o amor
rosto peregrino que não chegou
a ser

e os escombros
os buracos    abismos sem caminhos

restos    restos

cinzas
às portas das casas de luzes apagadas

e tanta vastidão
tanto brilho nas altas madrugadas


   ***

entre os arremedos do sol
por nascer    escavas
até poderes murmurar palavras
para sobreviver    mar alto    árvore
operário
revolução

e depois olhas as ruas e vês
passam as pessoas
e acompanhas esse passar
como se o luar te alumiasse
e inventasses a noite clara

para continuar
e ser    um coração    uma lágrima
e crer

(inéditos)

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013


                      NA ESCURIDÃO  CAVAVAM A LUZ

Eram fantasmas na noite, eram luzes vagabundas apagadas.
Na escuridão escondiam-se, escondiam-se, confundiam-se com o escuro...
Na escuridão cavavam a luz, cavavam o tempo para a liberdade.
Por isso eram corações que voavam, na planície o seu silêncio era um alarido
Andavam rentes às paredes nas noites.
Desapareciam.
E de repente revelaram-se, libertos os seus rostos das trevas, o entusiasmo, todos cantavam, todos se abraçavam.
O mundo renascia, o mundo que nas árvores acordava e se paria.
E eram estradas largas, eram campos, campos...


                   ***

descia a noite no veludo do céu
sentado no largo tronco do sobreiro caído
olhava o rosário das estrelas que longínquas
se abeiravam à janela do escuro
uma luz ao longe se acendia
um cão por detrás dos muros ladrava
uma vizinha chegava à porta e chamava

a mesa estava posta
o pão branco cortado às fatias
a luz do candeeiro

e o coração em paz
adormecendo


    ***

o rancho voltava do campo
e tu pai à porta da padaria
sorrias
eles diziam  -  boa noite
amanhã queremos o taleigo
aviado - e perdiam-se ao fundo
da rua
na hora que caia

depois era o silêncio
a noite
o pão que fermentava


      ***

a massa fermentada do pão
luzia no coração da noite
e tu pai de avental branco
tecias o abrir das rosas com os teus olhos

o abrir das rosas o doce da fome onde eu crescia
e sorria a água dos meus dias


       ***

ó vagabundo     não digas nada
às estrelas
sonha
e demora o sol
no outro lado do mundo

nessa cama de pedras e escuro
és rei


          ***

ressurge a aurora
ainda o escuro entretece seus dedos de sombra

uma luz se acende na casa repousada
uma voz ecoa

daí a instantes
de alforge ao ombro
o ganhão

acende o sol
e inclinado beija o trigo da sua água


     ***

as árvores crescidas
no alto a lua era uma lágrima
os ganhões as ceifeiras
os pastores
na casa
a fadiga recolhida

sonhavam
as searas
repartidas

e a noite lá fora atravessada
por corações voando no segredo


        ***

deixa o coração na planície

deixa-o
tão largo é o ondear das searas
e como soa terno o canto da rola
claro o despertar do melro

ganhão
almocreve
ceifeiro
o pão está semeado
maduro ao sol

logo mais tarde quando for ceifado
há-de beber sôfrego o alento
da tua água

da tua boca


     ***

a noite está pousada
a ave no seu ninho recolhida

quem vem lá
uma ovelha tresmalhada
um vagabundo
uma alma penada

noite deixa no escuro
esse coração
tecer o ouro do seu trigo

um outro sol

que aqueça o frio
do corpo coletivo

( do livro Um Sol Dentro de Casa)
           OS DIAS GRANDES


Dias grandes, a limpidez, a claridade do céu.
Era o cheiro do pão acabado de sair do forno, o café com leite, o sol aberto sobre o mundo...
O mundo desperto, os pássaros nos telhados e nas árvores, as árvores grávidas da fruta já madura, o cheiro doce no ar do seu suor...
A rega na horta, a frescura da água nos pés descalços, a roupa molhada, as faces salpicadas ...
No largo era as conversas, um cavalo que do fundo da rua surgia e passava a galope e parecia que desaparecia voando...
O mundo era maior e as coisas revelavam-se mágicas: falavam-nos e convidavam-nos a brincar.

        ***

se eu ainda soubesse desenhar
numa única folha de papel
o mundo com a sua boca

fazia do coração tão solitário
um arrozal
cheio de mãos
felizes


     ***

não eram os pássaros
nos ramos das árvores
era o teu coração
no vento

as tuas mãos
na imitação das asas


     ***

o cavalo voava
e a calçada ia atrás dele
o sol aparecia
propositadamente
para lhe dar razão

ou eras tu que o ias buscar
para vestires tudo de prata


      ***

e os pães
quem os fazia crescer dentro do forno
e quem aquecia o forno
eram os olhos que o olhavam

(ou era o coração
de tanto ansiar)


    ***

esses dias ainda são estes
e serão outros que hão-de vir
sempre o azul há-de habitar

há-de inventar
os olhos

(do livro Um Sol Dentro de Casa)

terça-feira, 24 de dezembro de 2013



   O SILÊNCIO DAS ESCADAS DO TEMPO

Nascia o dia  e eu ouvia a música das vozes: eram os ranchos que passavam para a monda do arroz.
Uma fita de sol entrava no meu quarto de janela meio aberta, e eu, ainda dormitando, ficava com o eco fresco daquelas vozes a povoar o meu mundo de sonhos acordados.
Depois ia para a rua, ia para trás da casa, para a estação e perdia-me entre madeiros, entrava e saía a correr dos vagões vazios.
Ia à procura de grilos nas ervas altas
Ia para dentro dos canaviais.
No anoitecer ouvia de novo o canto dos ranchos que regressavam e via-as de lenço enrolado ao rosto, chapéu na cabeça, desaparecerem dentro das casas.
No degrau da porta assentado ouvia, então, o impossível  rio entre as estrelas, o telegrafo do silêncio...


                   ***

escuto o silêncio das escadas do tempo
olhos carregados de mel
água a correr
e as vozes dos ranchos
que alouravam as noites
e faziam as sementes respirar

escuto
um rio
mansamente

escuto


       ***

os ranchos passavam cantando
e a rua era mais larga

e ficava a música do silêncio
e ficava o mistério
e eu escutava
o telegrafo das estrelas
as ruinas mágicas da terra
e a água que chorava por detrás da casa

e o mundo
de tesouros escondidos
era o escuro sem medos

e eu ia
seguia
sem o peso das lágrimas


            ***

rostos modelados de trigo da tarde quente
e da sombra das árvores
rostos amenos e frescos como a água da rega
a cantar nos corações debruçados
ó mulheres
mães da terra
rostos de planície molhada do vento e das labaredas
do sol
ó mulheres de trigo
rostos de lágrimas manhãs acordadas no peito
rostos dos montes a dizerem adeus
rostos lavrados com alegria com suor
rostos de mar

delicados amorosos trigueiros rostos


      ***

e na densa sombra das árvores
mesmo que as lágrimas corram
o lento mover das espigas
não deixa que se extinga
a luz
no coração da noite
             
(do livro Um Sol Dentro de Casa)
     E UM DIA FOI ABRIL

 
Era o inverno, as geadas, a chuva, as pessoas aguardavam: a lenha ardendo à lareira, o caldo com couves e um bocado de toucinho numa panela de barro ao lume.
O candeeiro a petróleo aceso, as sombras bailando nas paredes, ouvia-se um assobio lá fora, passos...
Nas portas das casas agachadas abria-se uma fresta e saía um fio de luz tremulante.
Os homens iam à taberna, falavam baixo estranhas palavras...
Rente às paredes, desapareciam no escuro, ao fundo das estradas...
Entre as árvores silhuetas escondidas encontravam-se, cochichavam...
Depois eram as trevas, o silêncio.
Debaixo da terra as sementes germinavam...
E um dia foi Abril. 



          ***

esta é a doçura de aqui

a água a inundar a erva
nascida nas entranhas dos dias
ainda pobres


     ***

esculpir-te terra
como se em meu coração
erguesse
o oiro dos olhos


       ***

o trigo    a seriedade do trigo

enquanto no rosto meditativo
escorre
a água

grávida


    ***

deixai que à noite as pedras
fabriquem o seu silêncio
deixai
que as sombras se abriguem

brilham olhos

a água inunda
as raízes que resistem


        ***

sombras      e como redimirem-se da pobreza
que lhes era imposta

um rasto ficava nos seus passos

e no gelo do ar
(oh primavera nos olhos dos rostos)
acordava o luto    o protesto subia
com o verde das espigas

e os vultos cosidos ao escuro
avançavam
e o silêncio já era um clamor

e foi Abril

(inéditos)

domingo, 22 de dezembro de 2013

          LEVANTAR A AURORA



A vastidão, as searas ondulando, o sol saindo de detrás dos montes e na fundura do caminho ouvem-se as vozes, ouve-se o canto.
As vozes sobem, sobem no ar e o céu, o azul, na sua limpidez é uma abóbada larga, com o canto é mais alta.
Caminham compassadamente, de chapéu na cabeça, lenço ao pescoço: ondas, ondas, sussurrar, silêncio, rumor do vento nas espigas.
E eles, com eles faíscam as lâminas das foices, o suor escorre e no calor, nas labaredas brancas do sol, refresca.
Ouve-se um piar solitário, uma voz arquejante - água, água.
Entardece e o pão doce à soleira da porta oferece-se.



            ***

ouve    é rente ao chão    e vêm de tão longe
do mais fundo da planície

e o trigo ondula    e o trigo se levanta
à sua aproximação

as vozes    as vozes dizem povo
chão    o chão é o corpo do povo
e a água o seu sangue

as vozes     nos dias lavrando

amparando a água do trigo


               ***

levantar a aurora era o que eles faziam
por isso no campo as searas cresciam
e a água subia às hastes verdes e redondas

voavam-lhes os olhos

e longe    no outro lado dos montes ouviam o cantar
das vozes
que se batiam
nos dias de inverno

e o trigo amadurava e os entendia


                  ***

e na manhã despertada lavras

que lavrar é cuidares da tua mulher
que o chão é uma rosa que trazes ao peito
é a maçã florida que saboreias

enquanto um rego
debicado pelos pássaros
névoa prateada
ninho de mistérios e revelações

fica atrás de ti


             ***

goteja o orvalho   deixa a manhã subir rio acima
deixa o pássaro amarelo abrir as suas asas
a erva está acesa
fumega o trigo verde    e os bois
ruminam tão em paz

é a hora de o coração
se manifestar fonte

o pão está pronto e é doce do suor feliz


(Rente ao Chão ,é inédito. Levantar a Aurora e Manhã Despertada foram publicados no livro coletivo Santo Oficio. Goteja o Orvalho no livro também coletivo Terna Ausência)

sábado, 21 de dezembro de 2013

         E UM DIA...
 
 
Na chapa zincada as rosas do meu sangue semeadas, naquele mar o meu rosto espelhado; debruçado, gotas de água nascida em mim, deslizavam nas minhas faces e sumiam-se naquele chão dos meus pés.
E as almotolias, as caixas de ferramentas, as lanternas, amontoavam-se à bancada e depois refulgiam.
Ao entardecer eu ia para casa e esses poemas em mim semeados na oficina eu escrevia-os. E um dia corria a levá-los ao meu amigo e ele dizia - Que bonitos! Deixa-os ficar para mostrar à Alice.


DO OUTRO LADO

arrastas os pés
mas às vezes
é como se invisíveis asas
te levassem já ao outro lado

onde cantam martelos

e na água dos rostos
nadam sorrisos


O QUE ÉS

não sei o que és meu coração
uma lágrima
talvez
um parafuso

a gota de suor
no corpo da fábrica


ESTA HORA

falamos uns com os outros
à hora do almoço

caladas
as máquinas esperam

tão pequena esta hora


RENTE AO CHÃO

tão curvado
rente ao chão
o teu rosto

ó terra de azul que sol o teu
que encandeias os olhos abertos
para te verem

e cansas
os corpos para te construírem


LEVANTA O TEU ROSTO

vá    levanta
o teu rosto
desse montão de ferro

ainda tens muito chão
para andar
amassar
com o corpo do teu cansaço

operário de todas as manhãs


SOL DAS MINHAS MÃOS

segura-me o corpo
dias do meu alimento
sol das minhas mãos

fumegantes as chaminés
dizem adeus
perdem-se nossos rostos no azul

o nosso caminho é sempre adiante
pés dos meus passos no mundo

(do livro Homem da Fábrica)


              O PÃO MISTURA DE SUOR E AÇUCAR

A entrada da noite e mergulhavas no inferno...
Um fantasma no inferno.
E arfavas, a tendeira rolava, rolava a masseira, a massa despejada na tendeira, a massa aos bocadinhos, berlindes enrolados em farinha...
E o suor escorria.
E do forno, da boca do forno saiam cestos de pães, fumegantes, de côdea tostada e estaladiça.
Nadando em suor, ofegando, corrias, as mãos com crostas secas de massa agarrada, os olhos avermelhados, os lábios com pó e saliva e suor, os lábios engrossados de massa peganhosa.
E quando por fim nascia a claridade  e encandeado olhavas, respiravas, e nas janelas de vidros sujos vias a máscara enfarinhada do teu rosto, onde os olhos luziam.
Olhavas e descobrias que eras tu.


                   ***

do fundo de ti escreve   traz essas coisas fumegantes
rostos    gritos   lê nas entranhas
ensanguentadas     e não feches os olhos

com os teus dedos esgravata    procura
o rútilo
para que possas ser iluminado
é o pão    o pão para as palavras
é o suor das entranhas    o rodar de terras
o rever das cidades que transportas
são os rostos    os rostos
é a gamela
dos dias    a água    a nora rota
as súplicas

escuta aí um rumor de folhagem
quem é que aí pede
quem é que aí ri
quem é que olha


      ***

mas observa atentamente
e respira devagar    o pão      o sacrifício
o sangue a circular como um grito
e não podes fraquejar    as tuas mãos
têm de ser a pedra que fala    a pedra boca
a pedra olhos

e não te podes lamentar
os olhos    os rostos ao teu redor
ouve o arfar do sangue   ouve o
bater das veias no corpo
ouve o tempo    lento    a massa na masseira
o calor no ar
o calor no corpo

o corpo é uma estrela a suar
o pão a chorar


          ***

escuta de muito baixo    escuta    é uma revelação
os rostos    os olhos nos rostos
sorriem    e às vezes uma espécie de luz fulgurante
ilumina-os      é um relâmpago
é um sino então que ouves
no ar enfarinhado
na lenha ardendo
no agitar dos braços    vês
esse mistério     e não há palavras
as arvores lá fora    uma montanha lá fora
a luz do luar lá fora
é um mistério    o sorrir
e o gesto do pão    mistura de suor
e açúcar

a noite   o berço da noite estende os braços
e nós amassamos
dói-nos o corpo    e o corpo canta


               ***

mas escrever    dizer o que é humano    ouve pois a música
encosta o ouvido dos teus olhos aos rostos
lê nesses mapas
vê nesses lábios   aproxima o ouvido do teu coração
e com cuidado essas palavras tão íntimas
essa dor escorrendo
acolhe-a

que por isso a escrita    que por isso
assim o teu corpo cansado    o sacrifício
para que tudo cante      escuta pois a lágrima
o rosto viaja nele

a cama das palavras serás
e ouvirás então - sonho   piedade

nesses rostos    em todos os rostos à tua volta
sorri a criança com que brincas

(do livro Homem da Fábrica)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

       ESPERANDO NEM SABEMOS O QUÊ...

 
Melancolia, entardecer, as pessoas envoltas na sua própria sombra, caminham cabisbaixas.
Na solidão sonham coisas impossíveis: o que era para ser e não foi, o que tanto quiseram, as quimeras que amaram.
E as horas lentas, no silêncio, roem o tempo, as ilusões.
Cansaço, desanimo, olhamos: os olhos roídos das pedras, dos tijolos, dos andaimes, do frio dos dias...
Olhamos por uma fresta da janela remendada, de vidros partidos, olhamos lisboa, o tejo, os barcos que no longe, música calada, deslisando, nos dizem adeus.
E por fim, despedimo-nos, encolhidos, cansados, teimosamente esperando, amanhã, nem sabemos o quê...

INVOCAÇÃO

tanta gente na cidade    e a cidade espantada
chove
caem as folhas
os dias no calendário dos rostos
perpassa o vento      as vozes
mas quem revela a verdade
os rios que se perderam
as feiras da festa que já foi

mais logo à noite há-de passar
a seda de uma sombra
e entrar nos quartos de luzes apagadas


          SALVAÇÃO

não deixes escapar o mundo

carrega as pedras
alimenta-te nessa sua água escaldada
poro a poro respira
pelas feridas

segue
até ao desvão da última das noites

tão doce e longe é o mar


   A CANÇÃO

se nada somos
quem nos vê
quem se chega
só a estrela que à noite nos visita

e nos leva
para longe     tão longe
onde havia
a canção de embalar
que nos prometia

que nos prometia


    NENHUMA SOLIDÃO

quem te disse que tudo é de todos
que importa na madrugada as rosas
e os olhos das raparigas
estás
amarrado à tua condição
amassas cimento
carregas tijolos e pedras
bebes vinho
e cansado esperas
o consolo do enxergão
na barraca sem luz

no escuro
à beira das estrelas
de que és dono


    HORA

grades têm os pássaros
agachados em seus ninhos
é inverno está frio chove
ou é a neblina dos olhos
prendendo as suas asas

e as pessoas passam
e passam
envoltas nas suas sombras

nos seus rios


     EM LISBOA  AH EM LISBOA

lisboa
de saco pendurado ao ombro
nas apressadas cinco horas da tarde
perdida por ruas e becos

dentro do meu coração
no seu sorriso ferido
nos seus olhos acesos de riscos e lágrimas

lisboa
apressada às cinco horas da tarde
às cinco horas da tarde cansadas
às cinco horas da tarde
quando o dia começa a declinar

lisboa às cinco horas da tarde
deixa-me inclinar a cabeça nas tuas colinas

a las cinco horas de la tarde

(do livro Homem da Fábrica)

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

        
         O AMOR: O CONSOLO, O DESESPERO
 
O amor, que rosto é o amor?
Todos nós um dia nos interrogamos - Que é o amor? - e não nos respondemos.
Porque o amor é a ilusão dum suspiro, é um ai que se esvai, é um brilho de olhos que perpassa e como uma flexa nos atinge: e ficamos feridos no mais íntimo do nosso ser.
Para sempre, para sempre marcados a fogo.
E no entanto quem um dia não quis trocar toda uma vida por um desses sorrisos que tudo prometem, que tudo rendem.
Quem não quis morrer, morrer olhando, nadando nos olhos do amor sobre si debruçados!
O amor na solidão o consolo, na solidão o desespero.


         ***

quem canta no escuro

quem ergue a frágil mão

ó lágrima acesa
farol
para a ternura do coração

beijo     grão
gota a gota
procurando a água

árvore
doçura da respiração


        ***

de novo de ti se acercou a beleza
ó enamorado
e estavas tu preparado para ela

podaste as velhas árvores
e arrumaste a casa
como a podes tu esperar
assim
que vais oferecer ao seu jovem
coração em flor

tantos espinhos
sim     os alimentos para a tua dor

mas ela
ela    a resplandecida


         ***

desce a noite o escuro
interroga-te
mete-te na pele das horas
com o teu coração balança

o amor    esse rosto resplendente
essa água múrmura
palpitante
esse dialogar
que sabes tu dele

mas  vivê-lo é o importante


            ***

lágrimas    lágrimas    lágrimas
irmãs

todas filhas da dor

todas à procura do amor

(inéditos)

       OS POEMAS SÃO DE TODA A GENTE
 
Mas quem sabe ler no livro dos dias, dos anos?
O tempo que passa igual e saturante, o tempo que parece não passar, e de repente, estamos reformados, estamos velhos.
E aquelas horas de cansaço infindo recordamo-las, vêm à tona da nossa memória rostos, gestos, nomes, uma casa grande, todo um mundo: o suor, as mãos calejadas, feridas, os corpos dobrados, a roupa todas as manhãs que se vestia como se fosse uma nova pele: era a nossa condição de proletários.
Éramos operários. Fora o 25 de Abril e um cravo nas espingardas como se fosse no nosso íntimo, como se fosse dentro do nosso peito.
E entre o cansaço havia, às vezes uma tão grande alegria, um tão grande entusiasmo, as asas do sonho sobre todas as coisas se abriam.
E eu escrevia poemas.
Eles semeavam-me, eles semeavam toda a gente.
Eram de toda a gente.

      CANSAÇO

é uma mistura de ruídos na minha cabeça
por dentro vou ficando vazio
e as mãos sinto-as cansadas
tenho uma enorme vontade de fechar os olhos
e deitar o corpo não sei onde

deixaram de dizer adeus as árvores
e o sol de entrar pelos meus olhos adentro
deixaram os horizontes de me chamar
ou é a oficina que perdida na noite do mundo
engoliu o mundo

onde estão os meus olhos a minha boca as minhas mãos
eu quero pentear o mundo para ele rir e passear comigo


       MELANCOLIA

ainda aqui estou quase como quem está em lugar nenhum
céu cinzento sobre telhados vermelhos
olhos da terra apagados
uma melancolia de nevoeiro está dentro do meu coração
é um suspiro a terra
o ferro e o suor misturam-se no meu rosto

um voo de ave cega é no meu peito
e os martelos atroam-me a cabeça
tempo de fim do mundo

algures um rosto meio submerso na terra olha-me como quem morre


          UM DIA O SOL

na oficina não sei o que é feito de mim
não é a mim
não é àquele rosto cansado que sou eu
que vós falais e com quem vós rides

eu do fundo de um cansaço grande
sou um suspiro de silêncio no barulho frenético
onde os meus ouvidos se ensurdecem
eu na fadiga infinda onde quase morro
sou um pouco de pó perdido no chão

aquele mundo onde eu estou não tem princípio nem fim
o arvoredo talvez escondido por detrás de nevoeiros
perdido entre canseiras
o arvoredo é o nosso rosto
e as palavras ecos distantes
rumor do outro lado da vida onde uns olhos algures meus
bichos numa floresta espreitam

e o sol da montanha
um dia de manhã ou quase à noite
vem


     CADA DIA

e o peso
em mim
é todo o mundo de trabalho
como se eu nascesse duramente em cada dia

(do livro Homem da Fábrica)










segunda-feira, 16 de dezembro de 2013



            RESISTE NO CHÃO AMEAÇADO

A ternura do ferro, a oficina como um ninho: isso é uma lágrima na distância.
O que é que acontecera? Que terramoto sobreviera?
Como nos roubaram a dignidade?
Como nos humilham?
Gente à porta das fábricas à procura de trabalho, gente a ser expulsa da sua própria casa porque não paga as prestações aos bancos...
E a democracia, a ética, a verdade - como tudo isso é espezinhado!
E a poesia, a arma da poesia no coração humano é uma flor que resiste no chão ameaçado.
É um sorriso no rosto crestado que na lonjura acena.
É uma palavra, um recuerdo, uma gota de suor - a integridade humana que luta e não quer sucumbir.
É um sonho que continua vivo e na distância se debruça sobre o meu ombro e me dita a poesia.
E me diz que resista.


           UMA MANHÃ AZUL

oficina não és uma floresta perdida
onde deambulam pássaros e vozes subterrâneas
homens  rostos que acenam
comunicam coisas para lá dos limites

esse teu lugar é o centro
onde eu me afundo em dias
horas à espera que qualquer coisa aconteça
ou a semear uma manhã que um dia há-de acontecer azul

igual e diferente de todas as manhãs
     

            ENSINAMENTO

o que as ferramentas me ensinaram
é a forma das minhas mãos
a honestidade do meu pão sobre a mesa

é a ternura dum sorriso duma boca gretada
a humidade duns olhos comovidos

o que as ferramentas me ensinaram é a resistência
dum parafuso
e duma cantoneira


    CONFIDÊNCIA

às vezes temos vontade de renunciar
aflige-nos a nossa desolação
então espreitamos um sorriso no rosto dos companheiros
e assim procuramos continuar

procuramos que a oficina
este rosto de paredes grandes e voz de máquina
seja profundamente humano na nossa compreensão
damos-lhe todo o nosso querer
e às vezes uma esperança é quase uma confidência

que na oficina como quem solda o fero
ou ajuda um companheiro
queremos transformar o mundo


    EVOCAÇÃO

na maresia da tarde contigo repousando ó fábrica
trago nos ouvidos o barulho ensurdecedor das tuas máquinas
trago em meu coração o teu sorriso de criança aninhada
a força das tuas mãos no ferro
a angústia de tantas horas lentas

trago ó fábrica o teu respirar de ar poluído
o teu respirar de fraternidade
todos os dias no burburinho do trabalho

ó fábrica de silêncio
neste dia ameno
o sonho continua a povoar o nosso coração rio sem margens


(do livro Homem da Fábrica)

domingo, 15 de dezembro de 2013


                  A PEQUENISSÍMA LUZ

 
O frio, a solidão, no corpo encolhido e tremendo de uma criança é uma pedra que arde, mas no corpo de um velho é gelo que queima e água que se esvai.
Porque tudo já se embaciou, tudo se gastou: o brilho, a surpresa, o ardor, o entusiasmo e até a paixão - o mundo e as circunstâncias da vida tudo mastigaram.
Tudo já se consumiu.
De uma maneira ou de outra se sumiu no rasto dos dias.
E o que fica tem que ser a coragem e o amor.
Tem que ser uma pequeníssima luz que resista até ao fim.
Essa vitalidade íntima.
Que canta, até, na brevidade do tempo ser uma estrela que brilha mesmo depois de se extinguir.


     ***

é o entardecer    as pessoas
passam e não dizem nada
e tu
falas no silêncio    só por dentro de ti
um barco no teu sangue
um barco de fogo

consome-te o tempo

água pedem as tuas entranhas
mas os olhos das pessoas estão secos
e tu não estás em lugar nenhum

as estrelas estão mudas

o ar dói


     ***

lentamente escurece    e a noite já pousada em nós
já sem horizontes à nossa frente para andarmos

quem assim neste silêncio escuta o coração
o eco duma folha rolada pelo vento
onde nem sequer já soam passos
nem brilham lágrimas    sorrisos
na longa distância do outro lado
onde      asa dum sonho
perpassou o véu da ilusão     um rosto
um aceno    uma árvore florida    uma sombra
uma habitação

qualquer coisa que abrigasse a fome
dos olhos
a sede de conforto e ternura das mãos


     ***

o amor    o amor
esse abandono de nós mesmos
boiaremos
até nos confundirmos
na própria água

água ar luz
ou o espelho dos olhos


      ***

cigarro fumado
apagamo-nos
e o nosso brilho no escuro
de tão efémero
encandeou quem

quem parou
e trocou palavras connosco


      ***
            
no silêncio espreita a espada

e gota a gota o coração
em seu rio de folhas
agarra-se ao seu chão    raiz de ave
magoada


        ***

não vaciles     no duro chão
as pedras gritam
o peso dos pés    as pedras     os ossos
que os dias comprimem


      ***

é esta a condição    vomitar pedras (suor)
burilá-las
e depois construir com elas
a casa
para que os ossos ardam

(inéditos)

            O TEMPO DA INOCÊNCIA



Houve um tempo em que a beleza de tudo nos era revelado, o nosso olhar era límpido e tudo no nosso coração era uma festa.
O mistério estava em tudo e com tudo dialogavas.
Tudo era revelação.
As máquinas, com que curiosidade e prazer olhavas para elas e como o seu trabalhar te surpreendia: era a máquina da massa do pimentão, a máquina de rega da horta, os raros automóveis que passavam rápidos. E os aviões - um dia correste até, ofegante, parares junto dessa ave metálica a admirares o seu corpo de pássaro de asas abertas.
Ainda o mundo não roera a sua luz nem manchara a poesia.
Ainda as mãos nuas estendidas não se tinham revelado no seu significado de fome e injustiça e sofrimento.
Ainda ignoravas, que essas mãos, assim estendidas e suplicantes, morriam.
E as máquinas, a sua beleza, o seu mistério também morria.


    LONGE

no tempo onde brincávamos
as máquinas eram o rio que nos salpicava

e enchia os olhos

no trabalhar do seu mistério magicávamos
e queríamos erguer as casas e transformar
tudo à nossa volta

no jardim onde coubesse o nosso coração


     AMANHÃ

falarei contigo amanhã
tu me ensinarás o sorriso
do apito da fábrica no teu despertar

tu me dirás nos teus dedos o mundo rodar
a fábrica a trabalhar o burro a puxar a carroça

a água a música nos teus olhos


       A VISITA

no cinzento da fábrica
um riso ecoa
ecoa no silêncio
cortado pelo rugir dos motores
e do gritar duns para os outros

um relâmpago um rio de ternura
invade as máquinas as ferramentas
e o ar é mais leve
e o cinzento com olhos a rir
e adeuses de mãos a brincar

o filho menino do operário veio visitar-nos


             O MENINO

quisera trabalhar mas tão grandes eram os ferros
ou como as suas mãos eram pequenas
que o dono da fábrica se rira
sem lhe olhar o rosto ansioso
e o mandara embora

ele tão pequeno no mundo grande

         ***

(Longe e Amanhã são do Homem da Fábrica A Visita e O Menino inéditos)

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013


     O RUFAR DO TAMBOR

A imensidade, a imensidão, pousa o rosto sobre o chão, pousa os ouvidos e escuta o rumor, o rumor que soa vindo dos abismos...
Rumor de passos, do fundo dos tempos, através dos séculos,
Ouve o alarido...
E essas vozes se levantam, esses rostos marcados, esses corpos erguidos à altura da sobrevivente dignidade humana.
Tenacidade, persistência.
Porque alvejados, agredidos, vilipendiados, continuam.
Essa marcha desde o início.
Ouve-os, são o rufar do tambor que se não rende.
São a vitoriosa flor do sorriso.


     ***

o rio das vozes é um murmúrio
no silêncio
veste o mundo
é a boca do mundo

passam devagar
arrastam uma tão grande lamentação

que grito que não se solta
que voz presa e dorida
que anseio

passam
passam

sussurro de água

acordar do vento


     ***

vozes no escuro    vozes atravessando as paredes da casa em silêncio
que desesperos deambulam
a fome a solidão
e no entanto
amanhã
o sorriso de uma criança redime o mundo
amanhã há uma boca que se escancara e palavras
camarada    unidade    povo
hão-de ser gritadas

amanhã
batem às portas
e abraçam-se chorando

o amor é uma colmeia sem medo




      ***

dia a dia os seus olhos
contra as correntes que os prendem
dia a dia
a empurrarem
o carro da humana dor

buscam
no fundo de si próprios o diamante
do amor
e sobrevivem

uns com os outros riem    e cantam    e gritam

querem que os vejam
irmãos do choro
e das pedras

semeiam-se

não desistem
do seu chão


       ***

nos rostos duns e doutros havia o riso
e tínhamos filhos
em casa adormecidos
à espera

por isso transportávamos
o sentimento indomável de que
juntos
iriamos defender esses olhos acabados de nascer

esse sorriso
esse abraço
esse beijo de ternura

caminhávamos
enlaçados pela terrível identidade

amparados
pela tão grávida perseverança

nas ruas uns com os outros
o nosso sangue invadido de preciosidades
morríamos   semeávamo-nos    e erguíamos palavras - pão paz
trabalho fraternidade

(inéditos)

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

       
           UM ROSTO NA LONJURA



Que rosto na lonjura avistas? E te acena esse rosto, esse rosto que tão melancolicamente fulge. Esses olhos que se levantam em tua direção. Esses lábios, o silêncio desses lábios, donde caíram palavras - amor, dor, dádiva.
E desta distância, anos e anos, sentes esse sussurrar, esse soluçar...
O que é que não viveste?
O que é que não deste?
E o ar ao redor é um lamento, uma suplica.
Esse rosto no silêncio e na distância, murmura, murmura...
É uma ferida a brilhar.
É uma flor, um rosto flor na noite a suplicar.


            ***

tu sabes e sentes    o amor
é uma lágrima permanente
uma ferida como um diamante
corroendo o coração

até romper a carne
até romper a pedra
e ser

um sopro

o apagar de uma flor


    ***

é só um instante
num instante tudo pode acontecer
um instante    um tão breve instante
e a porta do mundo

se abre para a esplendorosa revelação
do amor

e tudo se te oferece

os rostos iluminados
a rosa dos lábios humedecida

a tenebrosa claridade do mistério
a entrar no teu ser


     ***


poesia    é eu sonhar-te arco-iris
os teus olhos sombreados   água cintilante
rumor do mar no anoitecer    os teus
olhos
é eu andar   e murmurar    balbuciar
sons de prata
sons negros e fulvos
os teus olhos   e a tua boca  
e o oval da tua face

ó abóbada brilhante
veludo da claridade a nascer


            ***
        
os odores imaginários da tua pele
as ânsias
de galgar os degraus do teu corpo

à noite a lua alta e eu a segredar
o quanto foi predador o sentimento de
querer-te      não ouves
o mundo a dizer o teu nome
o mundo ainda a ser suspenso dos teus lábios
quando tu me chamavas e eu não ia

a tua beleza
o meu sangue em fogo
o terror de uma estrela que se despenha


       ****

vejo um rosto
tão claramente belo é esse rosto

olha-me com tanta ternura
e eu sorrio

e esse rosto distancia-se
estende de longe as mãos para a minha solidão

para a solidão do mundo

onde os pássaros
acabados de nascer

vão morrer
qualquer dia vão morrer   e não abrem as suas asas

(inéditos)

         AS AVES

As palavras cantam, as palavras cintilam, no escuro cintilam: são aves raras que refulgem.
E é necessário apontá-las para elas serem e formarem ninhos e perdurarem.
E, então, escreves - sonhar, amar, cais. - Escreves: zarpar, chorar, estrela, ternura...
E és um barco a navegar, o teu coração, as aves no teu coração abrem alas e alçam-se para os largos horizontes...
E tu queres que olhos apagados despertem e vão com elas.
No mar da inclemência, sem medo das feridas: flor, paixão - a ansia desmedida.
Até um dia, um dia, o último verso acordar e beijar os lábios que da vida se despedem.


       ***

escurece tão depressa
e as ervas pouco crescidas

quem cantará
depois no escuro

quem virá assim de longe


         ***

os sonhos são os barcos que se fazem ao mar
lá onde uma rainha nos espera
lá onde não há cais para aportar


       ***

deixa que como uma gota
de estrela
o
teu rosto
poise nos meus olhos
e me dei a ilusão
de que esta noite escura
o não é


       ***

noite
não demores às portas fechadas
o choro íntimo das horas sós

torna o tempo depressa
no dormir do esquecimento
ou na ternura dos lugares
habitados
vai buscar esses olhos essas mãos

para que as lágrimas sorriem


      ***

é talvez amanhã
(mas não digam nada)
que saída de súbito da terra
a espiga
e sombra benfazeja
e água
que alimentará a sede
de meus lábios vagabundos
acordará
a voz mais íntima
dos versos
que em mim morrem

(inéditos)

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

FIDELIDADE, FIDELIDADE


O pão é duro, o pão parte os dentes, mas na boca com fome como é gostoso o seu sabor misturado à saliva, desfeito na mastigação.
É uma consolação.
E junto à lareira acesa ouves os mil ruídos da vida lá fora.
Os anos te lavraram, as desilusões te endureceram os ossos, mas te amadureceram o coração: porque resistes.
E a esperança na solidão é uma flor.
Um raio de sol na casa pobre e nua.
E amas e escreves, reescreves palavras que te semearam.
E a luta é um frágil barquito entre as ondas dos séculos: o rosto humano tão sulcado pela opressão e pelo sofrimento resiste. E no seu íntimo pede à coragem, pede à compaixão, pede à vida, à luz da vida - palavras, palavras, fidelidade, fidelidade.


                   ***

barcos vão e vêm    barcos com olhos
barcos de rosto e palavras
e tu

é como se a tua boca não falasse
é como se os teus olhos não vissem
estátua de gelo a arder
na voragem dos anos

e ninguém te irá devolver nada

e tu pedes às palavras    às palavras    pão
consolação


    ***

frágil o cristal do orvalho

frágil o eco da voz

frágil o bater das horas
frágil a respiração
frágil

o cair das flores

frágil o amor

frágil o poema
sempre inacabado


   ***

o que é     o que és
as folhas
sopradas pelo vento
rolam
tu passas devagar - que mão de abate
sobre ti
ou em que encruzilhada te
encontras

e do céu não caem estrelas
ouves o ar estralejar
nas árvores
no escuro

e olhas à tua volta
a solidão de tudo

tu e a tua sombra


      ***

nenhum rosto ao teu redor
nenhuma mão estendida
nenhuma boca a dizer-te fica

e intimamente interrogas
perguntas por alguém    e só fantasmas
rostos que te doem
e são lágrimas de fogo
no silêncio

e os nomes que soletras
já os não podem ouvir
morreram    morreram

desapareceram
num relâmpago desapareceram

e nem disseram adeus


    ***

escrevias    e dizias
ferramentas
como quem dizia pão
sorriso

o coração ofegante
contente


     ***

é tão precioso
o ritmo das palavras
nesta brevidade

e fazer ouvir o frágil
coração


     ***

mas
quantos versos como se
desenhasse o coração e o seu respirar
vou ainda
escrever

escutar
escutar
a fala da terra

lágrima sozinha
pão da madrugada
palavra
primeira balbuciada

futuro

camarada

(inéditos)

domingo, 8 de dezembro de 2013



A ROSA DA VIDA...


O escuro, o escuro, e olhamos do outro lado as luzes.
Que somos os que moramos com a desgraça, somos os que atrás das grades da pobreza vivemos no rés do chão da vida.
Luzes, música, a voz cálida duma cantora.
Enquanto no coração ulcerado uma língua de líquido fogo - o sangue envenenado pela amargura e frustração - afogueia e encandece.
E a rosa da vida, que entretanto se vislumbrara, se rompe.
E no vendaval dos dias os seus pedaços são a esperança partida, a respiração entrecortada, o silêncio.


      ***

quem repara
quem atende

as pessoas
enroladas em suas teias
os lábios
os olhos
catando as pedras

quem sabe

dos barcos que não navegaram
das festas que não foram

o risco
nas esquinas

a sombra tombando
das janelas


       ***

e assim no silêncio

terás de escavar
longos rios

e balbuciarás palavras - a ternura
onde está
que se chegue um rosto
e o vento que me traga uma voz


        ***

suspensa
duns cabelos brancos
duns olhos de noite

a lágrima
da terra


       ***

magoadas as folhas se desprendem
as folhas
os dias
tão cheios de bolor
e com todo o sangue para amar


         ***

apara o ar para respirares
e no escuro
te embriagares com o peso do silêncio

noturnas sombras
desfiam húmidos rosários
arcadas de soluços

e breve breve uma estrela arrisca o céu
para nos vermos

(inéditos)
                  É PRECISO DEFENDER O PÃO, A DIGNIDADE, O AMOR.


Rente às paredes, nas ruelas estreitas e escuras, aí habita o dorido coração do mundo.
Aí os olhos gritam, aí a alma rasteja e nas entranhas as bocas de dentes apodrecidos mordem.
Aí é a ordem injusta do mundo.
E os amantes escondidos choram.
As palavras - empreendedor, empreendorismo - são balas no semblante maculado da rebeldia, são balas para os seus rostos de anjos malditos.
Quem olha as suas feridas?
Quem lhe estende as mãos?
As fábricas apitam, fumega a terra lavrada, grita a humana boca a redenção. É preciso matar a desgraça, é preciso celebrar o pão, a dignidade, o amor.


             ***

o que é que habita o mundo
porque é que os pássaros
e as mãos
desapareceram

quem acende o silêncio

os rostos desenhados na água
para o choro cantar


    ***

as pedras não dizem nada
como há-de a flor crescer
como há-de o ar acariciar
e o silêncio escutar

rente às paredes
a amalgama de esqueletos
com olhos

a boca sem palavras


    ***

silêncio    o fundo silencio
onde navega a muda
canção
na desgraça escondida
por ser proibido o amor
por ser proibido
tudo
menos morrer
no deserto sem água morrer

sem nomes para chamar


      ***

quem lhes tirou os olhos
quem lhes roubou a luz
à noite refocilam na lama
dos seus dejetos

o diabo olha-os e chora

ninguém os quer

ninguém os ama


     ***

e ouves o repetitivo lamento     a sombra
a sombra daquele coração    e da sua
solidão
é um apelo
uma voz
que se apaga

e fica na vastidão nua
no ar da vastidão nua    um eco

um brilho

(inéditos)
                DEPOIS APARECIA O SOL


As geadas, o frio, as encostas despidas...
Era de manhã, os vizinhos encostados à parede a espreitar o sol.
Conversava-se, contavam-se histórias, e, tu, com avidez, ouvindo, bebendo, sôfrego, aquelas palavras: eram as cheias, as árvores levadas na corrente, as casas só se lhes vendo os telhados...
Passava o rancho das mulheres para a monda do arroz, o rosto enrolado num lenço às cores, chapéu enfiado na cabeça, luziam-lhes as faces meio escondidas, brilhavam-lhes os olhos, os dentes na boca de  lábios entreabertos.
Cantavam, ao passar cantavam, riam a falar para nós .
A mãe vinha à janela, chamava "Vem pôr um chapéu para não te constipares."
E, tu, olhavas, os carros de bois rodando lentamente carregados de lenha, de cortiça, fardos de palha...
Passavam as vacas leiteiras com os bezerros atrás, um pássaro surgia no alto, no azul...
Tu, friorento, encolhido, olhavas, abrindo invisíveis asas e voando por cima das casas, por cima dos montes, atrás de impossíveis quimeras, atrás de sonhos assassinos...

 
        ***

e dessa terra
traz as palavras    o sabor a pêssego
o sabor a cereja
o sabor a laranja
o sabor a pão
quando na manhã límpida
da geada
e do
amanhecer
estendias as mãos roxas de frio
e a manteiga
te escorria
aos cantos da boca
e mastigavas
com delícia mastigavas

o mundo era então tão grande
o pai e a mãe
caminhavam de lado para lado
olhando para ti


      ***

e fica esse borbulhar na alma
essa pedra preciosa
essa água

e vês
nesses dias percorridos
laranjas girassóis
searas de trigo
- há tanto tempo
- que tens feito
e tu ouves e olhas
as sombras
as paredes
o rio quase desaparecido
e os caminhos tão despidos
de
revelações

já não descobres nada

o céu    o céu

o mundo dos caracóis
e pardais

ninhos
entre as árvores escondidos


      ***

o horizonte largo largo   as pequenas espadas de restolho
do trigo ceifado
o rio      o arvoredo mais escuro
o silêncio     a quietude

olhas      olhas     o vasto espaço     e recordas
uma carroça lenta deslisando na estrada
o rebanho espalhando-se nos montes
na ribeira ouves a fonte
vês a estreita ponte
as cheias com o tumulto das águas
transbordando
invadindo
casas
e searas

olhas    olhas
como são altas e despidas
as árvores sem folhas
no outono

como no frio o azul
do céu
é límpido
e transparente

que invisível véu estendido
que tristeza nessa paisagem
que fala silenciosa

que mistério envolvendo a vida
desgosto em tudo
como se
em tudo visses o teu rosto

olhas    olhas
o cão em baixo deambula
os pombos
o branco dos muros

a vida passa
bem ou mal
passa

passou

olhas     olhas

escutas

o choro dum menino no frio dessa paisagem


           ***

eu sei     pai     mãe

eu sei    quando nasci    ou antes disso
quando me geraram e sonharam
eu era o príncipe da luz

e a grande limpidez do azul do céu
o colorido fresco dos prados
o brilho da água de pequeninas ondas
brincando
o coração     o coração tão cheio de cintilações
com tudo isso      essas glórias e poderes
que são o mundo e a beleza do mundo
com tudo isso     para tudo isso ansiaram
a minha vida que ainda havia de ser

por isso    pai     mãe    eu tão pobre
de tudo o que os outros chamam riquezas

eu    que só tenho os meus olhos e a minha boca
e as minhas mãos
eu como se nu vivesse     às vezes     às vezes
na imensidade dos dias e das noites
comigo só     ou até em meio
de multidões
eu     pai     mãe      não tendo nada
tenho tudo tudo
porque
tudo na sua profunda verdade se me revela
e nessa dádiva só me pede
que eu ame
e me abra como a flor ao sol ao ar
abre as suas pétalas
e dá a sua beleza

pai    mãe    é este o poder
igual ao dum menino acabado
de nascer

que mal abre os olhos
e se deslumbra
e se surpreende
e se interroga

é esta a riqueza
que é igual à nudez
e ao amor

a poesia

essa música calada     que só escutada
se revela
palavra simplesmente nomeada
que faz chorar
e sorrir

palavra que é dádiva

leve e pesada escura e clara

humana simplesmente humana

poesia

(inéditos)

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

QUEM VIRÁ, ASSIM...


Tudo era tão menino, tudo se tornou tão distante, sozinho, entardecido. As estrelas vestidas de lágrimas, de luto os ramos das árvores.
Como se numa madrugada a nascer existisse uma flor corroída...
E a luz, pequenina, a voz segredada - fio de águas límpidas - entre caminhos escondidos, no escuro, morresse.
Esse brilho se apagasse.
Quem virá, assim?
Quem encontrará os versos que no silêncio morrem sem serem revelados?


                     ***

já foi há tanto tempo    labirinto da felicidade
leveza
luz
que asas me acariciavam o ar
que vozes ciciadas    escutadas
no silêncio
na música do silêncio

alto muito alto o brilho da noite
a me falar

volver volver
terra a ser
branco ninho de veludo


        ***

e é o que te resta    um fulgor
um diamante
uma cereja cintilante
no escuro dos olhos
no escuro do mundo

e esse sabor

essa cintilação

voz   voz   cantando

uma boca respirando
junto à tua boca


        ***

onde estou eu     e é tão vasta a noite
qual é o nome de todas as coisas
como é que eu sei tão pouco
só nasci há instantes

e vou morrer sem nada ter aprendido

barcos     barcos

vozes     vozes    que me disseram os nomes


        ***

mas eu sei    o silêncio    e o escuro

nada de brilhos    rostos
almas laranjas
almas amoras
almas delicados corpos
desenhando o amor

o escuro    o punhal do escuro

o muro sem voz


          ***

eu sou isto sem palavras
para serem vendidas

esta espessura
esta pedra
com sangue dentro

silêncio
silêncio

vou morrer
e ninguém vem beber
a minha água

(inéditos)

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013



A IMACULADA IMENSIDÃO


As palavras, os poemas: o rosto humano, a humana respiração, as palavras - estranhos, enigmáticos animais - nascem nas entranhas e às vezes acariciando, às vezes mordendo o coração e os lábios até o sangue se soltar, se revelam e são o sorriso, a luz, o rosto da terra a cantar.
São revelação.
A água.
A música do primeiro dia.
As palavras, as flexas, os diamantes, as preciosidades, que tão intimamente segredam e desenham a imaculada imensidão habitada de luzes: as luzes nas trevas. O amor e a sua redenção nos olhos do mundo a chorar.


     ***

ouves a primavera a chegar
dizes nomes    flor e
orvalho

sussurro e madrugada

e a terra é um menino
deslumbrado
a gritar para o céu
palavras que acabara de aprender    fonte
e água a correr


      ***

o sol a nascer e na limpidez do verde vivo
das folhas do orvalho
os meus olhos
os meus olhos acordados
a beberem
a poesia

os nomes revelados
e a tão íntima alegria

de lentamente soletrá-los

dizê-los


     ***

oiço as vozes
que espessura tão clara atravessando a
noite
que leveza
de asa
brilho de
metal
reluzente

as palavras


      ***

sim    e depois    é
a espada cintilante

a espada
no fragor das ruínas

do sangue gastando-se

a espada
as palavras   a música    o brilho
das palavras

a catedral


    ***

há animais   palavras animais

estranhos     ferozes animais

na ponta dos meus dedos

e eu quero dizer os seus nomes

nomeá-los
nomeá-los

nomeá-los e morrer

(inéditos)

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

SAUDOSOS OLHAM O MAR


Caminhos escondidos, porões de navios, sombras que se escondem em desvãos...
Até que os seus olhos receosos descobrem outros mundos e não sabem decifrar a estranha caligrafia que vêm.
Têm fome, querem sobreviver e lutam.
Sobem aos altos andares, carregam baldes de cimento, tijolos, pedras. Correm, ofegam.
Ansiosos, agarram-se ao seu celular.
Falam uma língua a cantar, a rir, a chorar.
As mãos feridas, os rostos lavrados do fogo e do frio, persistem abrigados nos subúrbios das cidades.
A sua força é o seu suor escondido no cimento dos alicerces dos altos andares.
E olham o mar.
Aos domingos olham o mar.


MÁSCARA

carregas
a máscara do pó

amassas o cimento

e és apenas um menino
com os cabelos a embranquecer


CINZENTO E SILENCIO

falar de ti     e do pão de cimento que parte os dentes
falar da camisa que trazes vestida
das calças cheias de nódoas
falar da maneira como olhas a quem passa

não é nada    não dizes nada
o que importa é esse peso de pedra
que são os teus olhos
feridos


TÃO PESADAS AS PEDRAS

tantos e tantos baldes de cimento
tão pesados os dias

confundem-se com o ferro
sorriem ou fazem caretas
vieram
objetos naufragados
atirados à areia

despida a pele
que a cidade vestia


ROMANCE

e no entanto esperam sempre
enquanto a neve dos dias se confunde
com seus cabelos
e o calendário dos seus rostos adormece
carruagens para lado nenhum
nos caminhos sem passagem de nível
onde as sombras se sentam nas gares
com bancos de madeira arrefecida

e no entanto esperam

sempre

(do livro O Homem da Fábrica)
     O ESTANHO A SER RIO


Eu debruçava-me e no mar prateado da folha de flandres via o meu rosto. Naquela prata espelhada gotejava a minha água.
Eu com o compasso e o esquadro traçando almotolias, traçando lanternas. Com a tesoura navegando naquele oceano e com as minhas mãos golpeadas e enegrecidas, moldando a face do mundo.
E escrevia, numa folha já manchada de óleo, à pressa escrevia poemas que surgiam à flor dos dedos, poemas que do fundo das minhas entranhas, inesperadamente, se revelavam.
Escrevia "o alicate a beijar o ferro". Escrevia "o estanho, a água do estanho a ser rio e a adormecer".
E, depois, era à tarde, ia na camioneta e batia à porta do meu amigo e mostrava-lhe esses poemas. E ouvia as suas palavras, ele a dizer-me "Escreve, escreve todos os dias, olha ao teu redor e escreve"


       ***

se o ferro não cantar serralheiro

como vai ser teu rosto
como vais ser barco


    ***

à bancada

novelo
de mim próprio
debruçado nos meus dedos


    ***

o ferro no meu peito
e os vossos olhos
ao fundo

uma lágrima


      ***

o silêncio
é a resistência
dum parafuso

o sol


     ***

vede as mãos e os olhos
são troncos
que sustêm casas
e sonham com o azul
erguido em andaimes de ferro


          ***

os martelos não são meros objetos
mas quem compreende
esta fome
e esta condição
de sermos irmãos do mundo

e de transformarmos o rosto de todas as coisas

(do livro O Homem da Fábrica)

terça-feira, 3 de dezembro de 2013




               A APRENDIZAJEM DO MUNDO

Anos e anos, muita água passou debaixo das pontes, mas é como se fosse hoje: eu aprendia, na oficina aprendia, aprendia tudo, a ser homem, a lidar com as palavras, a lidar com o ferro.
E escrevia poemas e erguia, na bancada, debruçado, como uma flor erguia as preciosidades - almotolias, lanternas, as caixas de ferramentas - que com as mãos roxas do frio, golpeadas da chapa zincada, afeiçoava e estanhava.
E eu escutava dentro de mim, olhava e escutava, via naqueles rostos o suor escorrendo, lavrando as suas faces.
E eu escrevia.
Eu aprendia.


O SOL SUADO

duro    o ferro é muito duro
ou é o nosso rosto que está tão massacrado
(chão gretado de tanta sede) como se o calor não amaciasse nada
e o fogo não clareasse e não fosse com os nossos olhos
que o sol suado alumiasse o mundo e as bocas


CAMARADAS

aonde estais agora que é noite e as máquinas estão paradas

sonhais com os filhos que estão para nascer
(os filhos do mundo são nossos filhos)
o mundo está grávido e nossos corações estão cheios de pão

aonde estais

sempre em qualquer lugar do mundo todos somos um
e um somos todos


        MELODIA

ressuscitar-te a cada momento melodia dos ferros
e risos de rostos mascarrados

que o sol não se envergonhe de brilhar
nem as flores de serem flores

terra que o coração tem para lavrar


A OFICINA SEM MIM

sei que sem mim a oficina fica mais vazia
há sem mim um grande bocado de oficina
que não ri e está mergulhada na sombra

a minha bancada e as minhas ferramentas
parece que esperam
parece que estão a dormir
e que sou preciso eu para as acordar


O FUNILEIRO

é um velho funileiro
sabe todos os segredos da profissão
a oficina e ele são como dois velhos amigos
com muitos anos de amizade

conhece os mais pequenos pormenores
sabe de antemão onde há-de pendurar o fole
onde há-de arrumar a folha de chapa zincada
como há-de lidar com a fieira
tem o sítio certo onde se assenta
conhece o barulho da porta ao abrir e fechar
sabe onde se há-de colocar para ver melhor

o chão da oficina é feito dos passos dele

    (do livro Homem da Fábrica)

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

         ATÉ QUE UM SUSPIRO OS MATE


Quem olha os seus rostos? Quem repara e lê nos seus olhos?
Quem os ouve?
Têm o coração pesado, as vidas escuras...
Caminham em ruelas esburacadas, vivem dentro de escombros, são enxotados como animais amaldiçoados.
E no entanto têm dois olhos e uma boca e as palavras nos seus lábios às vezes soltam-se - dor, dor, perdão à vida por tanta humilhação.
Porque eles são os prostrados, porque eles são os que nasceram nas margens e cresceram como os catos...
Coisas pútridas.
Mas riem, às vezes riem.
E esperam e persistem em respirar.


              ***

os seus rostos voltam-se devagar    e olham tão
melancolicamente
cerca-os uma tão grande solidão
dos buracos dos seus olhos espreitam bichos
e da sua boca uma língua negra pende

os seus rostos assim monstruosos pedem
nos seus rostos feridas fulguram como diamantes
luzes que por instantes se acendem e como suspiros
se apagam

aparecem e desaparecem    meteoritos
no céu do mundo
lumes aos cantos    estranhas aranhas sem teias
vagueiam entre esqueletos de paredes
espreitam escondem-se e perdem-se para lá
do escuro

afundam-se no silêncio como numa noite sem fim


                   ***

mas é este o lugar   onde crescem os
catos

aqui gente ao redor das estátuas
aqui entre o fumo e as sombras
nas ruelas estreitas   fantasmas
vidas gastas    gargantas insatisfeitas
velam
ou espreitam
ou encostados às paredes esperam
como se o mundo fosse um nevoeiro

ó pardais debaixo das árvores
ó sonhos     navios perdidos nos mares
ó estrelas apagadas nas lâmpadas acendidas
horizontes     horizontes     de cães a ladrarem
às solidões

quem atende
ou que é que de repente precipita
o grito


              ***

não    não vegetamos   mas somos gritos
mudos

vagueamos    e olhamos    olhamos
nos céus os pássaros de fogo    e neles
viajamos      pedras com sangue dentro
diamantes apagados
deixem-nos em meio de florestas
deixem-nos com as mansas feras
facínoras     pervertidos
somos tudo    tudo
só não somos os devoradores das estrelas do mundo

mentimo-nos e inventamos
como se assim alimentássemos os sonhos
que jazem na lama e nos detritos

nos subterrâneos
abraçamos fantasmas    e morremos

todos os dias morremos


                  ***

como é sombrio o poema alimentado da azeda
e fria angústia
o poema    o céu sem brilhos    a rua escura onde espreitam
lobisomens    fantasmas de terrores
que esgravatam    arranham às portas
dos corpos solidões

rastejam animalejos     a pele se arrepia e mancha
de suores     ó noites frias e extensas
como toda a agonia do mundo
quem somos      que fazemos
bordejamos o poço de onde saímos
para onde vamos    porque todos    todos
nele se afogamos

e nem um brilho    uma carícia
um riso
que nos minta e nos ame


               ***

as mãos    o coração     como se chorassem

e todos os seres não fossem irmãos

iguais     todos iguais sem paredes
à sombra
uns dos outros    sonhando     e arrastando-se
até às estrelas


  (inéditos)