sábado, 30 de novembro de 2013

                  AS PALAVRAS FLOR E ASSUNÇÃO


Sente a ameaça, sente o desespero de tantas almas infernizadas: o escuro das suas vidas: cercados, cercados!
Convoca as palavras, que a poesia seja um grande coração de toda a gente, e, as palavras que brilhem no alto do céu e sejam reivindicação, luta, fraternidade, abraço, beijo, filho, mãe, irmão. As palavras transportadas pela multidão, as palavras nas bocas indignadas e na esperança das respirações agitadas.
As palavras: gaiola aberta para se ser livre, punho fechado erguido para resistir, as palavras flor, assunção.
Cada vez a multidão é maior, de todos os pontos da cidade vem gente: de rostos enrugados, curvados do trabalho, curtidos do vento e da chuva e do frio, trazem com eles filhos e netos.
Os mais velhos olham os semblantes jovens e riem rejuvenescidos.
E todos, lentamente, caminham, orgulhosos e decididos.
Trazem bandeiras, trazem a determinação do sacrifício. E gritam: pão, trabalho, confraternização.


               ***

            dai o pão
das mãos doídas e vazias
              dai-o
que a terra é uma garganta
     aberta sem cantar

            à espera
           da alegria
aprumada à esquina das casas


          ***

não és fantasma da noite passos ignorados
onde mora a solidão

mas quem sabe falar com as estrelas
e contar as horas
enquanto bate e canta    raízes da terra
o coração    sangue ardente
em sua condição de subterrâneo rio

e alimentação para as madrugadas


                ***

eu sei e digo    amanhã é domingo
como se assim a ordem do mundo
tivesse algum sentido

o único sentido
é eu olhar o rosto amado     olhar
e sentir-me renascido
ou então ferir-me a lutar
e pensar - o sangue derramado
é a semente semeada da liberdade
nascida todos os dias no homem vivo
depois    eu sei    só    na noite
escrevo e peço à poesia que me ajude
amanhã


          ***

resiste resiste
irmão do
mundo

e lembra-te
em tantos lugares da terra
o sangue escreve a palavra liberdade


 (inéditos)

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

POVO: INVENTARÁS O SOL,O MAR....


Dias cinzentos, frios...
No escurecer, sentado no degrau da porta ouvias as conversas dos mais velhos e olhavas as casas baixas já mergulhadas na sombra do crepúsculo...
Um mocho, soltava o seu grito, por detrás das casas; no largo, os morcegos, riscavam o ar ...
Vultos surgiam das sombras e paravam junto de nós, as roupas remendadas, de alforges às costas, envergonhados estendiam uma sacola.
E, tu, olhavas aqueles rostos enegrecidos, magros, de barba crescida.
Era inverno, não havia trabalho e eles punham-se à estrada. Vinham em grupos de dois e três, enrolados em farrapos e pedindo por Amor de Deus.
Os olhos brilhando, com ambas as mãos recebiam o bocado de pão, em voz sumida agradeciam e depois sumiam-se ao fundo da rua, encolhidos, arrastando os pés.
Na lonjura,  silhuetas amaldiçoadas, ainda os avistavas...
Lamentações, desesperos, no pó e nas pedras, parecia deixar o seu rasto ...

            ***

qual
qual o peso das lágrimas
de que ninguém sabe


           ***

existir       dirás    é
pulso a pulso medrar
o voo do suor do trigo


          ***

esta é a obrigação do corpo
semear-se
até
o peso
de todas as lágrimas ser igual

          ***

ouve     em qualquer lugar
mansamente
o mundo
ao teu ouvido segreda   o oiro da dádiva

          
              ***

os dias claros hão-de surgir
e hão-de voltar os rios
à vala do teu peito

ó ninho da minha árvore


           ***

povo
desta minha poesia
tu
inventarás o sol   o mar
na tremura das estrelas gotejantes do teu rosto

(inéditos)

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

                   AS PALAVRAS NOS ECOS DO SILÊNCIO


O céu tão grande, perdiam-se os olhos: iam atrás dos pássaros, lá tão altos, um pontinho cada vez mais a desvanecer-se até, parecia, inesperadamente, o céu, a imensidade azul se abrir sem uma mácula: a grande abóboda, o seu brilho imaculado sobre o mundo.
E, tu, menino, te deslumbravas, tudo era revelações, o entardecer lento e silencioso descia sobre a terra, os rostos assomavam às janelas e chamavam: Venham jantar.
E depois as estrelas abeiravam-se às portas do céu - e ouvias a música do silêncio - o silêncio trespassado por vozes, ecos, o silêncio no cricrilar dos grilos, no ladrar dum cão...
O silêncio a ecoar nos passos na calçada e numa porta a fechar.
E dentro de casa a luz do candeeiro a petróleo e as sombras nas paredes e a voz do teu pai "Era escuro, era na estrada, o mato à volta e as luzes dos olhos dos lobos a brilhar..."


   O SÍTIO ANTIGO

este ainda é o sítio antigo
de manhã o sol subindo nas paredes
e à noite o silêncio pousado
no mundo

e ouve-se o mistério

(as estrelas brilham e dançam na água
dos rios)

perto longe acorda um choro de menino

depois acorda o dia


O CÉU ERA AZUL

tanque de água limpa
eram os teus olhos
e eu nadava neles

eu nessa claridade
eu no veludo do teu sorriso
me encharcava de felicidade

o céu era azul
e as árvores e a casa

em tudo eu sentia a música

tudo era o princípio do mundo


A MADRUGADA

a madrugada abre os olhos
acorda as casas

os pássaros deixam os ninhos
os cães ladram
os gatos espreguiçam-se
na padaria
o pão na tendeira fermenta
a lenha no forno arde
a mãe ao balcão

e o dia diz - menino vamos brincar


HARMONIA

entardecer

um amor silencioso
na cor branca das paredes


AS MÃES

sonham em sua quietude as mães
e as flores adormecem sossegadas


MORA

cerzir nos fios da madrugada
a brancura das geadas
e das casas agachadas

o mel da poesia

para eu nascer muitas vezes

(inéditos)





segunda-feira, 25 de novembro de 2013




                      RENTE À ÁGUA DO TRIGO


Entardecer, pássaros que regressam ao ninho, chilrear, adormecer de vozes...
Eu era tão menino, eu descobria a beleza e o amor, eu amava o escuro e ouvia a música do silêncio. E, então, a poesia se me revelava.
E, depois, o que aconteceu - que tragédia sobreviveu - a solidão cercou-me, o medo, o receio, a timidez...
Era a pobreza, os pés descalços no inverno, o taleigo das compras vazio porque na mercearia diziam "não pode ser".
Mas no princípio, no princípio tudo te falava, tudo para ti cantava - o mundo, a beleza do mundo se te revelava, refulgiam as vozes. E tudo era efetuoso.
E essas vozes jamais deixaram de segredar, jamais esse rosto invisível deixou de se debruçar sobre a tua face e de segredar no teu coração.
A poesia foi-te fiel.


               ALENTEJO

Alentejo onde em menino eu escutava
o nascer das flores e inventava
as estrelas que à noite se vinham sentar
nos degraus da minha porta

Alentejo uma lua de lágrimas acesas
nas mãos brancas e rubras de todas as manhãs


            SILÊNCIO

              silêncio
sem ti que sei da música
e como posso ouvir a voz
             de mim
             lá longe
brincando com as abelhas
          e as pedras


          ENTARDECER

um chocalho algures
soa
uma brisa
perpassa
de vermelho
se tinge
o horizonte
uma alma
se apodera da terra

é nos homens
à soleira da porta
que o sol dorme


       CANTAVA

e dobrava-se

e alimentava o seu cansaço
de mais cansaço
encostava o peito ao chão
de espadas plantado
afogava-se
na sua própria água
e no silêncio
às vezes
cantava     a sua voz
entornava-se macia e clara
nas espigas

tornava
o mundo partido
inteiro


      PARA ALÉM

para além de todos os horizontes

somem-se as espigas do trigo
mas resiste a água
e o coração humano se consome
e continua

(inéditos)

domingo, 24 de novembro de 2013


                     OS POEMAS QUEREM SER LUTA

Caminhas nas ruas da cidade, nas tuas entranhas a ebulição das palavras, das palavras que lês nos rostos que por ti passam e essas palavras - abraço, beijo - essas palavras - cisne e céu azul - essas palavras -  manhã e sorriso - essas palavras - grito e desespero - lágrimas que queimam, lágrimas que pesam e deslisam como um arado nas faces crispadas.
Seus olhos pedem e suplicam, o voo dos seus olhos que pousa em ti, no teu coração e tu, com o teu silêncio, dizes: coragem, coragem camarada, coragem, coragem amigo, coragem, coragem mãe, irmã, gente desesperada, coragem e um grande abraço de amor militante.
E segues, o coração latejante, o coração cheio de palavras que no silêncio aflito lês no ar.
E nesse silêncio os poemas querem ser essas vozes, querem ser a arma contra a dor, a solidão, o peso do mundo injusto e hipócrita, os poemas querem ser luta.


                        ***

as palavras    o que são as palavras
o teu coração dialogando
com os rostos    as lágrimas dos rostos
os beijos das bocas desses rostos

que pedem    e são palavras labaredas


                        ***

ouve    ouve os gritos
vê o seu sangue no ar
no vento
essas agulhas
essas mãos

têm os olhos grandes eles
e as palavras feridas

vê o seu sangue no ar
vão sós    sós uns com os outros
e arrastam uma cauda de dor

pedem água


                    ***

ver
o lado do mundo
onde estás

e aí

escutar
as palavras claras    estrela
sorriso    fraternidade
vocação

fidelidade

dar o sangue
à flor efémera
à voz segredada

fidelidade

ao pão    à boca do pão
à mão pequenina que pede o pão

ao coração que ama o pão


(poemas inéditos)

sábado, 23 de novembro de 2013


EVOCAÇÃO, AFIRMAÇÃO

Evocação, despedida, afirmação, é tudo isto e mais - é o ser humano integrado e a ser, afetivo e criativo, que a poesia, os poemas - são respiração e assunção, rosto desnudo, humanização é a palavra igual ao sangue, à lágrima, ao riso - fraternidade viva. E assim debruçar-se sobre o seu próprio ser e ser os outros, um grande abraço a toda a gente.
Ser integral.
Por isso, na pobreza deste tempo iníquo em que o Homem na sua qualidade é vilipendiado e humilhado, em que o ser humano é rebaixado e considerado mero objeto, mercadoria, economia, a palavra é urgente e é preciso levantá-la e torná-la humanamente forte.
A poesia que seja o rosto da resistência da dignidade fraterna e generosa.


A OFICINA

a oficina é o mapa onde aprendes-te a ler
o rosto do mundo
estradas foram dar a ela e estradas dela partiram
se quiseres saber vais a esse livro
de suor   vontade   querer
pertencer
a uma classe    pertencer ao mundo
pertencer

nada lá está apagado

no silêncio
a água


O JÚBILO

quando era pela manhã    o céu abria-se    eu ia
e via
a bancada ao fundo    perto da porta ao fundo
lá onde o mar do sol brilhava

a bancada naquela claridade
e as ferramentas nas suas formas harmoniosas

as minhas mãos eram então por elas moldadas
e o júbilo no meu coração nascia
os cântaros luziam acabados de fazer
os candeeiros
(mecânica do princípio do mundo)
segredavam o seu mistério

e eu era um modesto artesão
agradecido


UM FRÁGIL ROSTO

com o maçarico aceso
segredavam os meus dedos    o meu suor
beijava

e a folha de flandres   eu vagarosamente
com todo o cuidado como se acariciasse
um frágil rosto amado    eu lentamente
a curva da terra     a curva do mar    (eu lembro-me
dessa harmonia perfeita)   a curva do céu    a
curva duma boca    eu dobrava-a    a lâmina
a folha dobrava-a milimetricamente até
o círculo quase se fechar    e então o
maçarico cantava     e o estanho
desfazia-se    a água do estanho a ferver no
lume do maçarico mergulhava
naquela fundura

e o mundo sorria


E ÉS FIEL

repara    o compasso nas tuas mãos
a peça já pronta na bancada a resplender
fabricada por ti
o teu suor não é em vão
tu amas o ar que respiras
tu acreditas
à noite ao jantar a tua mão calosa ergues
e acaricias o rosto de criança do teu amado filho
é como se acariciasses o mundo
és então um ser criador
sentes o pulsar da terra feliz
e no sossego da noite sonhas
a imensidade
e de manhã
entre o nevoeiro do sono ao acordares
sentes o hálito morno e terno da tua mulher
e sentes o peso do amor no coração
é uma pedra doce esse peso
gostosamente

és operário
amas o trabalho das tuas mãos
amas o mundo
sentes que pertences a um povo a um país
a uma classe

e és fiel

(do livro O Homem da Fábrica)

sexta-feira, 22 de novembro de 2013



                              VOZES, VOZES, UM RIO CORRE E CANTA


No seio da noite e do silêncio, na casa agachada, na casa como um ninho, no frio do inverno, junto à mesa, o aquecedor a gaz aceso, evocava o passado, evocava o rosto suado e enegrecido, o rosto de face coberta por uma máscara de pó, ferrugem, óleo, suor.
E escrevia palavras: ferro, chapa zincada, alicate, chave de fendas, serra, martelo, almotolia, cântaro, frescura, cansaço, fraternidade, riso, sorriso...
Escrevia e via a oficina, as bancadas, o Jorge, o Alexandre, o Arlindo e outros e outros...
Passaram anos e anos e um rio corre e canta: vozes e vozes que se levantam, punhos fechados no ar, multidões: aprendias, aprendias a ser livre e a ser homem.
E escrevias poemas, guardavas palavras para um dia, sementes longamente ganhando raízes na terra, romperem essa crosta negra e brilharem à luz das manhãs.


                                         ****

porque eu escrevo e tenho esta função    digo    humanizar
o ferro
dar dimensão   arrancar ao silêncio    à
prisão do silêncio o rosto suado    erguer
ao alto como um mastro
dum navio desfraldado
esse anónimo
e pungente
trabalhar

que a oficina é um berço   é um país
e eu digo    fraternidade
e sinto o pulsar
dum grande coração
universal

e escrevo    soldar é unir
todos os países   é a mesma condição
de criar
e digo    trabalhar     lavrar
semear
com o suor
como se acariciasse um rosto amado

digo    oficina
uma flor


                   ***

uma flor   a beleza perfumada     a oficina
a cantar

e os dias eram uma árvore    e era primavera
os dias era o sol
a entrar pela porta grande aberta     os dias
era o mar
de rostos debruçados     sulcados pelas estrelas
o suor a brilhar

e às vezes era como se estivéssemos
de mãos dadas     um barco      um comboio
com muitas janelas    muitos lenços a acenar
a oficina a trabalhar

falávamos     era maio    maio era
um pardal no beiral do telhado
maio era o pão maduro     e o vinho
doce e gostoso
numa mesa geral

era a primavera    e chovia
e a chuva cantava     o sol era as mãos
maio era as mãos

a oficina  a
cantar


             ***

estou inclinado    o maçarico aceso    a chapa sobre a bancada
eu estou inclinado e estou no centro do mundo    eu
inclinado à bancada
sou o
telhado
do mundo

e escrevo    soletro palavras     à bancada as ferramentas
com as marcas profundas das minhas mãos
calejadas
como que me olham    como que me interrogam
à bancada eu soletro e digo poemas    o trabalho
digo poemas     a tesoura no mar da chapa zincada
a tesoura a ensinar-me o desenho do meu próprio rosto
o martelo com a marca das minhas mãos
a obedecer-me
eu à bancada    soletro nomes    rostos
suor
escrevo    pão    fraternidade    escrevo
o mundo é o rosto a suar
escrevo     o pão
para a boca beijar

no ar o pó da ferrugem
no ar o pó das máquinas a trabalhar
no ar os relâmpagos do maçarico

eu à bancada    vozes chamamentos  
rostos    a boca do mundo
a sombra do mundo

eu à bancada

inclinado


       ***

silêncio     digo    porque no silêncio       no silêncio leio
leio tudo     estou despido
e vou ao fundo

escrevo água
suor    eu debruçado à bancada     eu debruçado
rodeado
de palavras

oficina   foi isto que eu vivi    é isto o meu
mister
escrever ou cavar no ferro amolecido
nesta acumulação
entre caminhos    eu digo    oficina
fraternidade
e corro na memória dum tempo fervoroso

eram muitas bandeiras   era uma multidão
e cantavam
eram muitos rostos   estrelas    um imenso
céu
e eu via esse luar     eu via o sol a despontar
e eu dizia
oficina    barco a navegar
e eu navegava
a oficina era uma casa cheia   cheia
de olhos
a brilhar    bocas abertas a sorver o ar
e eu cantava

eu inclinado   eu árvore habitada
eu rumorejava

e dizia     o ferro     soldar
eu dizia      na chapa zincada semear
o suor
amassar o pão     a água
eu cantava

eu construía uma escada
o céu era azul
era o mar

eu cantava

(Do livro O Homem e a Fábrica)




quinta-feira, 21 de novembro de 2013





                        A CIDADE DESESPERADA

Na selva da cidade somos animais domésticos fugidos aos seus donos: E assim como vamos sobreviver?
É a angústia, olhamos, olhamos a solidão à nossa volta, olhamos a solidão em nós mesmos e fugimos. Fingimos à mesa do café.
Pedimos uma bica, refugiados na toca, às escuras, espreitamos o mar de pernas a passar, destroços levados na corrente de água suja, e ouvimos, julgamos ouvir o rugir desesperado dos seus peitos.
E então sangramos e custosamente decidimo-nos e lançamo-nos nessa torrente, desaparecemos, afogamo-nos...
E quando perdidos, feridos, alcançamos os ninhos de mágoas tecidos nas águas furtadas de um quarto frio, agarramos um livro e sôfregos mastigamos as palavras, saboreamos os poemas.


                                 ****

só    só    uma sombra que à noite ganha olhos
e espreita palavras   palavras    para dizer    apesar de tudo
para dizer    e digo então     amora fresca nas manhãs
alevantadas

e escuto assim um doce murmúrio
e como uma amarga queixa uma maldição
eu     e     tu      que somos o que somos
nas ruelas escondidos animalejos
receosos da luz
receosos das espingardas apontadas   dos olhos espingardas

e olhamos a lua    quero dizer    uivamos
oh fantasmas    seres viventes das entranhas
que nos mordem    e nos acariciam no gelo
das solidões
nas noites intermináveis

mas olho     e olho    e vejo
às vezes como uma flor fulgurante    um rosto
belo e como se escondido    um rio que brilha
e passa
e desaparece nas brechas do tempo

oh luminosidade


                 ***

a rua     eles uns com os outros a falarem
ouves assim uma espécie de sinfonia
um rio às cores     um incêndio a
andar
ouves aquela música
ouves palavras no ar

fósforos que se acendem
por um momento ardem
e depois
com os dedos queimados
ainda ficas mais no escuro
e vês     só vês
coisas a nadar
braços    pernas
quem quer chorar    ouves então
não sabes onde     no mundo     no mundo
ao lado
ou dentro de ti

tu     que és também
na rua
uma coisa a olhar


           ***

o frio
na noite vês o seu rasto escuro
vês como de esse escuro as lâminas
apontam
então um bicho tu és nas teias fantasmagóricas
e habitas um planeta de mortos
estradas     árvores secas
coisas
que jamais voltarão a cantar na flor do vento
e a dor dessa perda
é uma boca do tamanho da vida
e o lume desse choro
cerca-te
consome-te
e então pedes palavras    palavras
para serem a água a escorrer

a água até ao fim do mundo


                 ***

à espreita     na sombra à espreita
dessa fugaz coisa
ténue fio de sorriso despenteado
leve    levíssimo brilho
como uma asa que cruza o espaço
ou uma folha caída
ou uma lágrima vermelha entre o verde da erva
esse rubi desprendido da alma
oh verme     ser desprezível    humano remordido
o rosto e a alma chagados
e no entanto
no entanto
anjo    amante
amante do ar
amante do amor
como dum astro longínquo
ou duma gota de água
amante    amante de tudo   e de nada
rosto assim desfigurado
sorri

(inéditos)



                  NO ALTO DAS CASAS


No alto das casas, olhavas as pessoas que passavam, tão distantemente passavam, as pessoas no passeio, os seus rostos olhando sem ver, a solidão do mundo, o véu da solidão, sobre ti e sobre elas.
Elas tão distantes, tão distantemente passando, cabisbaixas, sem sorrir, transportando angústias e frustrações...
As pessoa como folhas de árvore esvoaçantes desprendidas do seu ramo ou asas arrancadas, rotas, as pessoas, os rostos fechados, os olhos olhando sem ver, sonâmbulos que, de repente, despertavam e sorriam.
E era como se acenassem.
E o ar parecia cantar.
E tu, atrás daquelas paredes ou subido nos andaimes ou no píncaro dos altos andares ajustando as peças trabalhadas do zinco, moldando os algerozes...
Tu, o rosto afogado num mar de suor, as mãos maceradas, sorrias também.
O vento, por instantes, perpassando.


OPERÁRIO

sou operário da construção
e às vezes vejo-me em terra
de ninguém

sonho no alto das casas
de no meu mar
caber o mundo
e de com tudo falar

construo-me

sou eu o estanho a suar


FUNILEIRO

és com olhos mãos    o coração a bater
és tão frágil
as telhas molhadas    as pernas que te doem
estás só    e o chão tão em baixo

e tens de cumprir
és funileiro
o maçarico aceso
(o vento e a chuva beijam-te
o rosto e as mãos)

da construção
o teu trabalho
é rigoroso
uma flor a nascer
uma canção para as casas

a água


FIDELIDADE

fidelidade ao mundo     fidelidade a mim mesmo
para que os cântaros cantem
e as casas sejam vivas
que continue o mistério
eu amparo a água com as minhas mãos


A NOITE

a noite apaziguada    pousada    e
já as ferramentas dormem    e
já as ferramentas sonham os
algerozes
sonham ao nascer do dia
cantar no cimo das casas
no vermelho das telhas
entre os pardais
e beijadas pelas folhas esvoaçantes

e os olhos a voarem
para o verde    o azul
e noivarem


O PROMETIDO

e as mãos vagabundas
não desistem
de procurar
a lua azul
as pétalas

e navegam os olhos

há-de cumprir o mundo o prometido


O SOL

no ocaso da cidade
a ganga
suada

nas mãos
ainda as rosas
de sangue

e no coração
a raiva
de vencer
o frio
das esquinas

ganga orgulhosa
de à noite
ser o sol
das casas

(do livro O Homem da Fábrica)




terça-feira, 19 de novembro de 2013

                      A ÀGUA DO PÃO


Ainda havia um resto de claridade quando mergulhava naquele inferno de labaredas, fumo e ar enfarinhado.
Então, na roupa larga e branca transformava-se em fantasma, com a arca do peito arfando.
Insano, corria a um lado,  a outro. E tendia e enrolava pão, arrumava os pães nos tabuleiros e empurrava os pesados carros de ferro, empurrava-os como uma besta puxando uma carroça numa ladeira. E os seus pés escorregavam naquele pó espalhado no chão de cimento e o suor escorria-lhe nas faces, entrava-lhe para os olhos e ardia...
E arfava  e olhava as horas no relógio pendurado no alto da parede, as horas lentas, lentas... E as máquinas a rodarem, a tendeira a rolar, o pão em massa, redondo, fermentado...
Era até ao amanhecer e às vezes pelo outro dia adiante.
O pão amassado com o suor do seu rosto.


                    ***    

mas o peso é uma flor do tamanho de uma montanha
uma flor de chumbo do tamanho de uma montanha
e mal podes respirar
e o gosto do pão na tua boca
e o pão nas tuas mãos    espécie de choro
e às vezes mesmo assim ris
e conversas - a lenha o carregar a lenha para o forno
enquanto lá fora as estrelas no seu mudo diálogo assistem
assassinos olhos    dirás tu    mas a tua condição de fragilidade
mas a tua condição de coisa
mas é a crueldade do mundo     pensarás
mas é      e tens de te revoltar
esta pedra em cima de ti tens de a tirar  -  o riso   o riso
é a pétala dos olhos

e isso    isso tem de ser um alarido
isso tem de ser o mundo a habitar
as casas        a fala das casas
na condição das mãos

a flor dos dedos


                    ***

e     às vezes é esse lume dentro das tuas veias    às vezes
são essas pedras a ferirem e a pesarem-te nos braços
às vezes no respirar no teu fundo respirar   o ar
é fogo     às vezes é fogo
e tu estás como se crucificado

e olhas    e ninguém lê nos teus olhos e sorri
olhas e não há nada à tua volta
ouves como que gritos    e ouves    um riso
de crueldade    as paredes    os rostos nas paredes
riem e choram
e tu às vezes já nem sabes onde estás
o pão é uma pedra nas tuas mãos
o pão nos tabuleiros é uma pedra enorme

e estás rodeado     espreitam os seus olhos
e aproximam-se
e o pão é um rosto
um rosto com os olhos despedaçados    -    um rosto sem estrelas
guiando-nos

e então o pão a manhã as luzes no escuro
um mapa estranho
e tu sonhas


           ***

mas é uma crueldade    vir ao mundo pra isto
este arder enquanto lentamente se morre
este respirar fogo e gelo    este olhar as mãos vazias
minuto a minuto interrogar
minuto a minuto doer

e a tendeira rola    é uma nora a tirar pedras
e tu não és nada    ou és assim um alcatruz roto
e a água dos dias    essa água ácida nas tuas veias
essa água     gritos escritos no silêncio
dos corpos
quando a tendeira
é uma pedra aguçada

e o mundo     o mundo é uma boca
escancarada
um rosto
que se esqueceu de sorrir
e nas tuas mãos o pão    o doce do pão
a chorar
e à tua volta os rostos    os rostos
às vezes choram
e às vezes sorriem

e tu na padaria ouves   ouves a noite
cantar como uma criança


            ***

o que é um rosto     é um pão debruçado
e a chorar    porque o coração pesa
e é uma flor ferida    o coração    a boca
do coração deita palavras de sangue
grita na sinfonia do silêncio    lê no
escuro enfarinhado do ar    mas o coração
o sorriso do coração no rosto   é uma canção
uma criança no rosto então canta e brinca
e o pão é o sol dos olhos    e o pão
é as lágrimas dos dedos     a
carícia dos dedos na água do pão

e ouves    o ar canta     ouves o fogo canta e dança
és tu que danças     são os rostos debruçados
escrevendo o doce da fome
o sorriso dos dedos de uma criança
pegando no pão

e a noite sonha    a noite trabalha
prenhe da manhã

(do livro O Homem da Fábrica)

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

                      UMA FLOR QUE TE OFERECESSE


Era entre os andaimes, as máquinas atroavam o ar, o suor essa água do meu corpo, semeava o chão e, eu, recordava-me de ti.
E esperava que o lento rodar do sol trouxesse o entardecer e imaginava as tuas feições: via o banco do jardim, tu debruçada sobre o meu cansaço, tu debruçada sobre o meu rosto e nas feridas das minhas mãos os teus dedos para que as dores morressem e as feridas cicatrizassem.
E o peso do cimento doía-me e eu resistia: erguia as paredes, dispunha as telhas, todos os dias lavrava o meu cansaço, sorria o meu suor, construía as casas como uma flor que te oferecesse.


O RISO

de manhã ao despedir-se
da mulher
acariciava-lhe o cabelo
e bebia-lhe o riso dos olhos

que na fábrica o dia era muito longo


AO JANTAR

era depois das cinco horas
ao jantar
quando a macieza dos cabelos
e rostos
dos teus filhos
te faziam arder os olhos
mais que o lume do maçarico
na oficina


CIDADE

digo o meu afeto em gestos íntimos
como num ritual o amor vibra e realiza-se
em cada momento que passa
em cada momento que passa
sonhamos uma estrela pequenina
uma flor no centro de nós mesmos
amamos nas coisas simples e de todos os dias
e um bater de porta
um pôr a mesa
um lavar a loiça
a despedida pela manhã
carrega-nos o peito
e dá-nos força para começarmos tudo novamente


NO OUTRO LADO DE LÁ

se tu és no outro lado de lá da noite
o ciciar primeiro nas cabelos da terra
e nos meus olhos te confundes com a água
para ti são os passos dos mansos animais
que despertos me habitam
no desejo das idades mais puras

se tu és no outro lado de lá da noite


À SOMBRA DOS TEUS CABELOS

guardarei no mais recôndito de mim
o teu rosto   a sua forma de amêndoa
a sua forma de pôr do sol
com árvores castanhas e um brilho de oiro
guardarei no mais recôndito de mim
os teu olhos ou a noite embalando um sonho
inviolável em ti e em mim
as clareiras da vida    a rosa da vida
em nossas mãos
da forma do nosso coração

nos caminhos do mundo
à sombra dos teus cabelos


(O Riso e Ao jantar são do livro O HOMEM E A FÁBRICA.  Cidade, Do Outro Lado de Lá e À Sombra Dos Teus Cabelos são inéditos.)
















sábado, 16 de novembro de 2013

                         A CASA É SÓ POR TI QUE ESPERA

Casas velhas, casas de longas e tristes histórias: mulheres abandonadas, viúvas, velhos a arrastarem os pés...
E olhavas e estranhavas aquelas vidas naquelas casas remendadas: de plásticos nas janelas de vidros partidos e ombreiras escalavradas, rachas nas paredes e fios de água escorrendo.
Lamentavam-se "No Inverno é pior, entra o frio e quando chove estragam-se as coisas."
Com o escopro e a maçaneta rebocavas aquelas paredes gretadas, ganhavas bolhas nas mãos, nos dedos, o suor escorria e ensopava-te a roupa, mastigavas pó, areia, lascas de pedra feriam-te as faces...
E aquelas pessoas ofereciam "Quer um copo de água?" Por instantes descansavas, refrescavas-te. E elas olhavam para ti e sorriam...


LONGE

quem sabe o peso das pedras
e o ardor da cal nos olhos

é a hora do almoço
o ti Carlitos e o Zé Americano
dão-nos o sal
emprestam-nos copos e pratos
bebemos o vinho especial da sociedade
as sardinhas assadas

olhas
há uma rapariga
que passa enfeitada
lá fora


ROTINA

no silêncio

as mãos
feridas
o sopro
escuro
dos dias

o pão
lavrado

no silêncio


LISBOA

os olhos ardem    de tanta coisa
o pó    as pedras
a ferrugem dos dias que te
passaram por cima

e tu sorris
não sabes se sorris
se o teu sorriso é uma ferida
uma flor encarnada
nos lábios
a maceta tão pesada
o escopro
e o entulho no chão amontoado
os dias tão compridos
tudo tão feito de nada
e o cimento e as pedras
e as tuas mãos
de sangue e pó amassadas
bebe uma cerveja - dizem-te
e por um momento respiras
olhas a festa do sol
enquanto os relógios rolam
e Lisboa junto ao rio
te acena
maternal e debruçada
para longe


VIAGEM

lentamente entardece

tanto doem as horas
as pedras
as tábuas
o pó

e depois mais tijolos
e mais pedras

ah    ainda se a noite
fosse uma promessa


NÓS

e estamos tão cansados
segredos e histórias lágrimas
armadas no cimento
desenhos sumidos
estamos tão cansados
escrita rio aflito
o martelo e o escopro
as vísceras de fogo

estamos tão cansados

no mar das casas agitam-se afogados
e ao luar o vento traz o cheiro de uma flor

estamos tão cansados


DE LONGE UMA CARTA

de longe uma carta vem
e diz que
entre a guerra e a fome
os meninos crescem

e que a casa por fazer
é só por ti
que espera


(do livro O Homem da Fabrica)

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

                         A TERNURA, CORAÇÃO DO FERRO

Acordava o sol, acordava o mundo: rostos, rostos, vozes, correria, mudavas de roupa, vestias a ganga azul.
E entravas na oficina.
As tuas mãos falavam, havia um diálogo, uma aprendizagem de anos, séculos: o suor, a água do teu rosto, do teu corpo escorrendo e semeando aquele chão...
E moldavas, as almotolias luziam, erguidas na bancada...
Riscavas a chapa zincada, traçavas, com a tesoura cortavas a folha de flandres já com as rosas do teu sangue tingindo a sua prata...
E, à pressa, o estanho derretendo e abraçando cântaros e lanternas, escrevias poemas e as palavras ferro, alicate, tesoura, martelo, tornavam-se belas e ganhavam um novo sentido: a poesia transformava essas coisas e elas refulgiam em teu coração.




OPERÁRIO


as tuas mãos são as mãos do mundo
em movimento
e os teus olhos a água do tempo
na terra do pão

operário de todas as manhãs


O SONHO


as mãos
gretadas
afagam
o ferro
e sonham
a música
duma boca
sem fome

a ternura
coração
do ferro


O PESO


é no meu coração
que está pesado o ferro


ALEGRIA


alegria

os olhos
numa caixa
nova
a luzir


À BANCADA


a fabricação dos olhos
e da boca
do pão

eis as tuas mãos

à bancada


NAQUELA HORA


talvez mais ninguém saiba
mas a diferença
de um milímetro
no ferro
era o peso do seu coração

naquela hora


SEARA DE ORVALHO


assim enrolado
pão
a fermentar

mondada
seara
de orvalho
e massa
de trabalho
nos dias
ao sol a brilhar

o teu rosto à bancada


O CÉU REDONDO


uma argola é o céu redondo
ou um seio e a sua macieza
dizes tu a olhar

e os teus olhos são barcos
na água do teu rosto
tão de charrua

na terra negra do ferro


LAGO


agora é o silêncio em ti pousado
e a noite a velar-te

guarda tu as minhas mãos
e que meu rosto em ti
seja amanhã azul e vermelho

oh lago do meu peito


(do livro O Homem da Fábrica)

terça-feira, 12 de novembro de 2013

                       FIDELIDADE AO MUNDO


Com a poesia ir ao mais profundo das entranhas e, aí, com a verdade humana habitada de emoções e sentimentos, buscar as palavras e desenhar  com elas o Rosto Operário.
O Rosto Operário debruçado para o mar das bancadas nas oficinas e fábricas.
Esse latir de coração, essa respiração do mundo, essa fraternidade, resistência à opressão, essa festa na criatividade, esse suor do trabalho.
Com humildade, dedicação - a nudez da poesia cintilante e reveladora  -  empenhadamente, comprometidamente, ser militante.



NA FÁBRICA ONDE EU TRABALHAVA

na fábrica onde eu trabalhava havia muito frio
mas os meus camaradas sorriam e contávamos histórias uns aos outros
de vez em quando encandeávamo-nos e esfregávamos os olhos
depois olhávamos admirados a perfeição da soldadura

medíamos dobrávamos batíamos o ferro
e era como se pouco a pouco algo dentro de nós se construísse
tínhamos ali as nossas entranhas e o nosso jardim

e aquilo era como a nossa horta ou a nossa casa à hora do almoço


AS OPERÁRIAS

os seus rostos eram uma seara
que acenasse

os seus olhos ora riam ora espreitavam
eram o sol entre as frestas do telhado
as suas mãos falavam
de horas e horas manobrando alavancas
guiando máquinas
polindo ferros

as suas mãos falavam
nas tardes cansadas quando se regressa a casa


O VENTO

de folhagem de cabelos era o vento
era o perpassar dum sorriso na fábrica escaldada
pelo calor do maçarico
e pelo barulho atordoador dos motores

o vento ao passar alentava e acenava
a meter-se connosco
e se misturava à ferrugem à poeira ao suor
dos rostos e das mãos agarradas aos ferros

o vento esperava por nós
lá fora à saída da fábrica depois das cinco horas
por detrás da casa no pátio ou nas árvores do jardim

aonde havíamos de ir sorrir-lhe e contar-lhe histórias
com a mulher e os filhos



A NOSSA FESTA

na oficina assim vivemos a nossa vida
misturamos o nosso calor ao calor do ferro
perguntamo-nos o significado das paredes altas
e soldando uma cantoneira a outra
parece-nos ouvir o mundo suspirar
e o coração segredar-nos a loucura de um sonho

quando nos olhamos nos olhos
revelamos no silêncio uma inquietação
e dizemos sem palavras a nossa tristeza o nosso querer

sorrimos e construímos a nossa festa na dureza dos ferros



HÁ-DE HAVER UM TEMPO

lentamente as máquinas moem o tempo
moem-nos as forças e traçam em nossos rostos
rugas profundas

nossos gestos são ao ritmo da rotação
de rodas e correias
os alicates as chaves de fendas os martelos os serrotes
são o zunir de moscas misturam-se aos sonhos
que povoam a nossa noite

mas há-de haver um tempo
um tempo feito com as nossas mãos
em que um horizonte sem limites penetrará pelas janelas adentro
dará uma nova cor aos nossos olhos fará nossos gestos mais lentos
mais cheios de música

há-de haver um tempo

(do livro O Homem da Fábrica)